O ego religioso (ou melhor, judaico-cristão) é inerentemente narcisista.
(Na minha cabeça, quase posso ouvir um advogado de filme americano pulando da cadeira: "Objection, your honor! Asked and answered!")
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Outro dia, um amigo professor universitário me chegou com uma dúvida cruel: tem uma vizinha no prédio em frente que sempre sorri pra ele. Ontem, ele descobriu uma jaqueta mofada, lavou à mão e pendurou em sua varanda pra secar. Hoje, a vizinha (vinte e cinco anos mais nova) pendurou uma camisola pra secar em sua varanda.
A dúvida do meu amigo:
"Alex, você acha que ela está me provocando ou debochando de mim?"
Você não tem nada a ver com isso, seu narcissista!
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Cristãos, defendendo a existência de deus:
Alex, não é possível que seja só isso. Que sejamos tão bestiais. Que eu vá morrer como um coelho ou uma barata. Que toda essa maravilhosa complexitude humana borbulhante dentro de mim vá simplesmente se acabar. Não pode ser. Deus tem que ter um plano pra nós! Você não preferiria que Deus existisse e você tivesse uma alma imortal, ao invés de simplesmente morrer e desaparecer?
(Um texto representativo: A Vida não pode ser só isso! Não tem sentido…)
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Sartre ensina que nossa existência precede nossa essência. A frase é difícil de entender a princípio, e é muito mal citada, mas quer dizer somente o seguinte: ao contrário do que dizem as religiões (que temos uma essência, a alma, que é eterna e existe antes e vai existir depois da nossa existência terrena), Sartre diz que nós primeiro começamos a existir e, então, através de nossas escolhas, de nossos gestos, de nosso comportamento, lentamente construímos nossa essência. Ou seja, nossa essência não nos é dada, não é pré-determinada: ela é uma construção DIÁRIA nossa:
"… se Deus não existe, há pelo menos um ser, no qual a existência precede a essência, um ser que existe antes de poder ser definido por qualquer conceito, e que este ser é o homem ou, como diz Heidegger, a realidade humana. Que significa então que a existência precede a essência? Significa que o homem primeiramente existe, se descobre, surge no mundo; e que só depois se define. O homem, tal como o concebe o existencialista, se não é definível, é porque primeiramente é nada. Só depois será, e será tal como a si próprio se fizer."
("O Existencialismo é um Humanismo", de Sartre, em versão pra download gratuito.)
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Uma reportagem do LA Times entrevistou inúmeros homens sobre suas reações aos abortos de suas companheiras. Um homem em específico falou de sua conversão religiosa e de seus pensamentos sobre ética e moralidade – mas em momento nenhum parou para considerar os sentimentos da menina que ele abandonou para abortar sozinha.
Sobre isso, comenta o The Last Psychiatrist (que é hoje o pensador vivo que eu mais admiro), em tradução minha:
"Narcisismo é isso: você é o personagem principal, todos os outros são somente figurantes. Eles não tem histórias passadas, motivações, nada. São apenas elementos do enredo. … [E]le é tão auto-centrado, mesmo hoje, que nem mesmo passou por sua cabeça que iria parecer ridículo em um artigo de jornal. … Narcisismo não permite que você considere que as coisas — boas ou más — dizem respeito a outras pessoas que não você. … Ele só conseguia ver o potencial de um artigo a partir do contexto de sua própria identidade, o que portanto quer dizer que seria completamente lisonjeiro para ele. Ao mostrar quão ruim ele era, isso mostraria quão bom ele é. Lembrem-se: narcisismo é fazer as outras pessoas acreditarem na história que você criou para si. … Não por falta de inteligência, mas porque é impossível para ele pensar de outra maneira. Vai muito mais além de considerar que as suas próprias crenças possam estar erradas: ele não consegue nem conceber que existam outras crenças que não as dele. Os jornalistas do LA Times só existem em relação a ele, como um meio de disseminar suas próprias opiniões. Eles não existem em si mesmos, eles não tem objetivos próprios. Eles não podem lhe fazer mal."
A matéria do LA Times e o comentário do The Last Psychiatrist: Changing abortion's pronoun & Do Narcissists Get Abortions?Direito ao aborto livre, legal e gratuito!* * *
Há algum tempo, Danusa Leão escreveu na Folha sobre uma empregada doméstica a quem deu "intimidades" e que depois lhe roubou e traiu. A crônica é um empilhamento de absurdos que rendeu muitas críticas à Danusa. Em defesa dela, muitos leitores argumentaram, em tom de desafio, se roubar dinheiro da patroa não era crime.
Na verdade, o que mais chama atenção no texto é o narcisismo em fase terminal da autora. Tudo gira em torno dela. A empregada não rouba por ser necessitada, por ser miserável, por ser desonesta, por ser perversa, ou por qualquer outra razão inerente às circunstâncias pessoais de sua vida: nada disso, ela rouba porque a Danusa lhe deu liberdades. A história toda é sobre a Danusa, sobre sua generosidade e bondade, sobre o que ela fez ou deixou de fazer. A empregada, apesar de ostensivamente tema da crônica, só entra nela como sombra na parede da caverna, sem existência ou vontade própria, a não ser quando reagindo a ou interagindo com a autora.
Narcisismo é isso. Não tem outra definição.
Leia o texto: Luta de Classes, por Danusa Leão
Danusa, depois da ultima aplicação de botox.
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Não estou dizendo que todo cristão é narcisista. Muitos são caridosos, humildes, generosos.
Não estou dizendo que todo ateu seja imune ao narcisismo. Muitos são arrogantes, vaidosos, beligerantes, egocêntricos, cheios de si.
Mas a base do pensamento judaico-cristão em si é eminentemente narcisista.
Se você de fato acredita nas escrituras (e não nesse deus new age, que algumas pessoas dizem acreditar, que é uma força, que é uma energia, blá blá), então você acha que esse universo todo foi criado pra você. Que todas as espécies foram criadas para que você as dominasse. Que você tem uma alma imortal e infinita. Que um ser onipotente, onipresente, onisciente, que sempre existiu e sempre existirá, te criou a sua imagem e semelhança (!), te ama e te protege, acompanha de perto a sua vida e tem um plano pra você. Se você perde um filho num acidente de carro, foi a vontade de Deus. Se o seu câncer retrocede, foi graças à misericórdia de Deus. Se o seu avião está caindo, você reza a Deus – pois apesar de tantos aviões já terem caído, você tem a secreta esperança de Deus ou te amar tanto e voltar atrás ou, quem sabe, não ter se dado conta que era você, logo você!, que estava naquele avião! Quando você entra em campo na Copa do Mundo ou vai à guerra, você também reza a Deus – pois tem a secreta esperança de que você, sua reza, o amor dele por você, seja suficiente para contrabalançar seu amor por seus adversários.
Podem até existir cristãos não-narcisistas, mas a narrativa judaico-cristã é narcisista por definição. Se você realmente se acredita parte do povo escolhido por Deus, como não ser narcisista?
Ser cristão, entre outras coisas, é acreditar que o mundo, o universo, sua vida, fazem sentido – e que você e sua alma imortal são parte integrante desse sentido.
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Já um ateu vive em um universo aleatório, caótico e sem-sentido. Para ele, deveria ser mais fácil não atribuir significado a todos os eventos que acontecem, não se perder em uma busca vã pelo sentido das coisas. (Ênfase em deveria, por favor.)
O olho humano (pra usar um famoso exemplo criacionista) pode parecer uma delicada obra de arquitetura genética, mas sabemos que é só o produto de milênios de tentativa e erro.
O ateu sabe, ou deveria saber, que ele está sozinho, em um universo aleatório e sem sentido, viajando pelo espaço a 100 mil quilômetros por hora, em um pedaço de pedra girando em torno de si mesmo; que sua maravilhosa inteligência e consciência são apenas o equivalente humano ao cuspe do lhama e à tinta do polvo: a arma competitiva que a evolução nos deu; que ele em breve vai morrer, e que também vão desaparecer seu país, sua língua, sua cultura, e inevitalmente, o próprio sol vai se destruir; que passamos uma infinidade não-existindo, que existimos por um piscar de olhos e que, depois disso, voltaremos a não-existir por toda a infinita eternidade do tempo.
Essa é a realidade na qual vivemos. Ela não é boa nem ruim: ela somente é. Dentro desse contexto, cabe a nós viver, amar, construir nossas existências.
Entretanto, apesar dessas premissas básicas, muitos ateus são incrivelmente egocêntricos, cheios de sua própria auto-importância; mesmo os ateus muitas vezes caem vítimas desse tão-humano "fetiche por sentido" e acabam atribuindo significado a eventos totalmente aleatórios.
Jesus claramente gosta mais de umas pessoas do que de outras.
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Voltamos ao meu amigo. Professor universitário, inteligente, geralmente perceptivo. Aliás, ateu.
É possível que a vizinha estivesse de fato de provocação ou deboche? Claro. Entre seres humanos, tudo é possível.
Ela sorria pra ele quando seus olhares se cruzavam na varanda? Claro. Se você cruza olhos com seu vizinho de varanda e fecha a cara, isso é grosseria. Tudo o que o sorriso quer dizer é que ela tem um mínimo de educação. Vai ver sorriu sem nem mesmo registrar conscientemente a presença dele.
Entretanto, para meu amigo, vinte e cinco anos mais velho, do outro lado da rua, esses sorrisos esporádicos aparentemente já significavam algum tipo de relacionamento. Na vida da moça, ele seria não mais um "completo estranho cuja existência ela desconhecia", mas sim "o vizinho com quem trocava sorrisos esporádicos". De certo modo, era como se essa relação tão precária lhe permitisse compartilhar um pouco de sua juventude e beleza.
(Homens reclamam que mulheres adoram super-interpretar o significado profundo de cada coisinha, mas até parece que somos diferentes, né? O que mais tem nessa vida é tiozão carente que jura que qualquer sorriso, atenção ou palavra carinhosa da garçonete, vendedora ou hostess vinte anos mais nova significa que a buceta dela está piscando só de pensar na possibilidade de sentir aquela pança contra sua barriguinha lisinha.)
E meu amigo, ateu e inteligente, pai de uma vestibulanda poucos anos mais nova que a vizinha debochada ou provocadora, jamais considerou a possibilidade de uma simples coincidência.
Não lhe ocorreu que ele de fato não tem nenhuma relação com a vizinha. Que ele jamais passa pela cabeça dela. Que ela provavelmente não pensa nele NEM como o tiozão levemente calvo e pançudo da varanda em frente. Que ele não é nada pra ela e que ela não faria nada em função dele – talvez apenas não ir nua à varanda. Que ela pendurou sua camisola no dia seguinte de ele pendurar sua jaqueta simplesmente porque vivemos em um universo caótico, aleatório e sem-sentido, onde sequência não significa necessariamente causalidade.
Eu sei como meu amigo se sente. Esse texto poderia ser sobre mim. Estou chegando aos quarenta, também dou aulas em universidade, sou levemente pançudo e ficando careca, ateu desde sempre, e vivo cercado de alunas e leitoras entre 18 e 22 que me admiram mas jamais me veriam como objeto sexual.
É difícil mesmo, colega. Dos dramaturgos gregos aos pastores evangélicos, das comédias românticas à nossa prima solteirona, todo mundo sempre nos diz que temos um destino traçado, que as coisas acontecem por um motivo. No contexto narcisista de nossa cultura, temos muitas vezes aquela impressão de que nossa vida é um filme; nossos pensamentos, a narração em off.
Então, é claro que tudo acontece em função da gente. É claro que a moça da varanda não tem existência própria nem motivações individuais. As ações delas só são compreensíveis em relação a mim – ou ela está me provocando ou está debochando.
A única opção tão intolerável que não conseguimos nem mesmo conceber é que ela simplesmente nem saiba que existimos.
Que deus não exista e que eu seja um animal sem alma que em breve morrerá, ok. Mas, porra, ser ignorado pela menina da varanda é demais. E meu ego? E meu amor-próprio?
Minha religião é narcissista.
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(Auto) tratamento para narcisistas:
ALEX CASTRO
alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // todos os meus textos são rigorosamente ficcionais. // se gostou, mande um email, me siga nofacebook, compre meus livros, faça uma doação ou venha às minhaspalestras. e eu te agradeço.
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