Antes de comprarmos os presentes de Natal, exigi que passássemos na Confeitaria Bigbem. Esse seria meu preço por acompanhar Joana na busca do presente ideal para nossa filha decorar seu apartamento.
Para mim, tudo era simples. Bastava ir numa dessas lojas de decoração metidas a besta e escolher o que havia de mais caro. Sem nem piscar. Dinheiro não era problema. Afinal, não trabalhei como um desgraçado a minha vida toda, sustentei empregados sanguessugas e esmaguei os concorrentes para pechinchar com o presente da minha princesinha.
Mas com Joana era tudo complicado, pois ela sempre queria algo “exclusivo”, que viu na novela das oito ou numa revista de estilo. Dessa vez, Joana procurava o abajur de um tal de “Romero Britto”. Sei lá quem é esse sujeito, possivelmente um fabricante de abajur que era amigo daquele decorador delicado demais, meio afeminado, que nossa filha contratou e que minha mulher idolatrava como se fosse um guru da decoração. Saco.
Acabei concordando em acompanhá-la nessa aventura em busca do abajur, mesmo não gostando da perspectiva de que, com esse tipo de presente, eu fosse beneficiar nosso genro, aquele vagabundo sonhador que largou um emprego na minha firma para ser artista após ler uma bobagem na internet. Minha preocupação era a de que, se eu estivesse certo e o casamento da minha filha não fosse durar muito, então o vadio levaria na separação de bens metade de tudo que déssemos, inclusive o tal abajur.
Então, por toda essa encheção, meu preço era irmos primeiro na Confeitaria Bigbem, comprar meia dúzia de pastéis de nata, meu doce predileto, e feito no meu lugar preferido.
A confeitaria fica no centro da cidade, e nos sábados é difícil estacionar. Estava muito quente naquele dia. Para piorar, nessa época do ano, aquela região se enche de mendigos pedindo trocados e de panfleteiros distribuindo papeizinhos publicitários inúteis. Mas os pastéis de nata da Confeitaria Bigbem compensavam tudo isso, inclusive aquele calor horrível que me fazia suar demais.
O que você precisa saber é que tenho olhar de águia e já percebo de longe os mendigos e panfleteiros, de modo que calculo antecipadamente minha trajetória para me desviar de tais figuras. Por isso, quando reparei, ainda a uma quadra de distância, num vulto parado de pé bem ao lado da confeitaria, esmolando com a mão erguida para os passantes, tratei de abaixar a cabeça, determinado a ignorá-lo.
O segredo, nesses casos, é demonstrar o quanto antes que não se percebeu a presença do pedinte. O truque é passar como se a criatura não existisse, com andar firme e olhar distraído.
E eis a parte mais importante: jamais, sob hipótese alguma, você deve estabelecer contato com seus olhos. Pois é pelo olhar que os mendigos julgam a sua presa, é pelos olhos que eles percebem se você é do tipo que tem medo, e pode ser intimidado por uma mão firme, ou do tipo que tem peninha, e pode espontaneamente dar dinheiro.
Estávamos já próximos quando vi, com o canto dos olhos, uma mulher gorda sair da confeitaria. O mendigo deve ter pedido uns trocados sem sucesso, pois assim que a senhora virou as costas, o escroto gritou para ela algum desaforo que não consegui entender.
Depois dessa cena, em que um trapo de gente ofendeu quem lhe recusava esmola, percebi que estava diante de uma pequena operação de guerra.
Agora não se tratava de apenas entrar na confeitaria, comprar pastéis de nata e sair tranqüilamente. Não, havia um daqueles vagabundos que adoram constranger os outros. Alguém determinado a estragar o meu dia e o de qualquer cidadão de bem que passasse na sua frente. Um desses ressentidos que não quer trabalhar, mas só ganhar dinheiro às custas do meu suor. Algo que meu genro tentava também fazer.
Como percebi ao notar seu vulto, ele estava à esquerda da porta da confeitaria, e nós entraríamos pela direita. Portanto, não havia nenhum perigo na entrada. Mas, na saída, seria o momento decisivo, a hora em que os ratos são separados dos homens, o instante em que você revela se é um perdedor ou um vencedor.
O ideal seria passar pelo mendigo conversando com Joana, pois aí ele pensaria que o ignorei sem querer, e não por arrogância ou por medo. E essa manobra ainda apresentaria outra vantagem tática: se ele abrisse a boca para pedir trocados, estaria dando uma de mal-educado, pois interrompeu a conversa dos outros – menos razão teria, portanto, caso me provocasse.
Confesso que não consegui aproveitar o prazer que era visitar a confeitaria. Não senti o perfume das massas de pão e de doce que eram manuseadas lá na cozinha. Só ficava me perguntando o que era melhor fazer ao passar pelo mendigo, se conversar com Joana ou aparentar estar perdido em pensamentos.
Quando recebi o pacote da atendente, ouvi o abusado, lá fora, pedir “uma ajudinha” a outro cliente que saía. Pelo silêncio que se seguiu, acho que era um fraco e deu dinheiro ao vadio.
Tentei pagar os doces apenas com notas. Nem aceitei as moedas de troco, pois o mendigo poderia ouvir seu tilintar quando eu as guardasse na carteira – o que só lhe daria mais esperança e ousadia em sua investida. Era uma guerra de nervos, e todos os detalhes estratégicos precisam ser cuidadosamente considerados.
Saindo da confeitaria, estufei o peito e me preparei para mostrar àquele desqualificado que eu não era uma presa fácil. Iria ignorá-lo completamente. De qualquer modo, sempre havia o recurso de conversar com Joana. Era só falar o nome “Romero Britto” e ela se empolgaria.
Mas Joana atendeu o celular bem na saída. Agora, era só eu e ele.
Permaneci com os olhos abaixados, olhando para a calçada. Como um animal seguindo seu instinto matador, confiante já no sucesso, ele abriu a boca para pedir “umas moedinhas”. Não respondi. Acho que meu queixo tremeu um pouco, não tenho certeza, mas pelo menos senti um tremor involuntário que ele poderia interpretar como sinal de covardia. O calor na rua parecia ainda mais sufocante, e temi que mesmo as gotas de suor no meu rosto fossem interpretadas como provas de insegurança.
Foi então que ele fez o impensável, o inadmissível. Ele agarrou meu ombro. De alguma forma, o safado havia interpretado algo em meus gestos como um sinal de que eu era fraco, e decidiu colocar sua mão em mim. Um atrevimento que merecia imediata retaliação.
Encolhi meu ombro com força, mas meu braço, antes mesmo que eu esboçasse na mente um pensamento para justificar a sequência de gestos precipitados que se seguiria, ergueu-se e desceu pesadamente para revidar a ousadia do canalha com um golpe, enquanto, num giro de pernas, eu ficava de frente para dele.
O problema é que me esqueci de que a mão que batia era a mesma que carregava o pacote com pastéis de nata. No susto de perdê-los, com medo de amassá-los, abri os dedos logo após o murro, só para ver o pacote escapar feito um projétil.
Não tive tempo de ver a reação do mendigo ao meu golpe, pois tudo o que eu acompanhava era a trajetória do pacote indo parar no meio da rua, bem na frente de um fusca azul-calcinha que estava passando naquele momento. Meus deliciosos pasteis de nata, debaixo de um carro que sequer importado era.
Aí a mão do mendigo posou novamente no meu ombro, e isso foi o que faltava para despertar algo em mim. O calor, a perda dos pasteis, meu genro, o abajur do Romero Britto, o decorador de Joana, o fusca azul-calcinha, todos os panfleteiros e mendigos que insistiram em não ser ignorados ao longo da minha vida: tudo isso convergiu para que, naquele momento, eu segurasse a gola branca do casaco vermelho do mendigo e esmurrasse sua cara repetidas vezes. Estranhamente, eu sentia uma alegria quase infantil em fazer aquilo.
E foi quando sua barba grudou na minha mão.
Apenas um fato inconsistente como aquele poderia interromper a sequência de golpes que eu desferia. Uma barba na minha mão era algo estranho o suficiente para exigir de mim um segundo de reflexão. E a esse segundo seguiu-se outro, no qual olhei para o mendigo e reparei o quanto era curioso ele trajar casaco naquele calor, sem falar no seu gorro, também vermelho.
Eu estava cercado de curiosos. À minha direita, Joana gritava com uma expressão apavorada. À minha esquerda, a moça do caixa, na calçada, estava tão chocada que esqueceu a mão parada, estendida, oferecendo aquelas moedas do troco que deixei com ela. Por algum motivo, durante minha saída, a funcionária da confeitaria não percebeu que eu havia dispensado as moedas e foi atrás de mim para entregá-las.
Era essa a razão do sujeito fantasiado de Papai Noel ter segurado meu ombro: ele queria me avisar que ela estava me chamando. Por fim, notei que numa pequena placa ao lado dele estava escrito, em letras coloridas, “Colabore com um Natal sem fome”.
Todas essas percepções e conclusões não consumiram mais de seis segundos. No sétimo, dois policiais militares me puxaram para longe do Papai Noel. Um deles torceu meu braço com uma das mãos e, com a outra, pressionou minha cabeça contra a parede da confeitaria.
Senti frio metálico anelar meus punhos. Eu estava algemado. Essa é nossa polícia, fraca para reprimir depredadores e maconheiros durante histerias coletivas, mas pronta para atacar um cidadão de bem que cometeu um pequeno equívoco.
Passei algumas horas na delegacia, tive de ligar para o advogado da minha empresa. Fui interrogado e paguei fiança. Mas nada disso foi o pior. O pior foram os jornalistas na saída da delegacia, fotografando, fazendo perguntas e tentando cobrir todos os detalhes sobre a vida do “Mata Noel”.
Esse foi o apelido que me deram na imprensa. Claro que não matei ninguém, aliás o cara não se machucou muito e eu é que me ferrei pagando uma indenização que melou nossas próximas férias em Miami. Mas os jornalistas acharam divertido o apelido “Mata Noel”, e aí pegou.
Em seguida, virou uma febre. Alguém tinha gravado a pancadaria com o celular e, na mesma noite, já estava no Youtube. Chegaram até a fazer um funk em homenagem ao “Mata Noel”. No Fantástico, um psicólogo tentou explicar meu comportamento com uma teoria furada sobre minha sexualidade.
Por falar nisso, toda essa atenção da mídia encorajou uma ex-funcionária minha a aproveitar os holofotes para me acusar de assédio, quando tudo o que fiz na época em que ela trabalhava comigo foi ser romântico do meu jeito. Outras ex-funcionárias se uniram a ela, e agora estou me separando de Joana – que, descobri, andava de caso com aquele decorador que eu achava delicado.
Sem mencionar os ex-funcionários que, aproveitando-se da minha situação desprestigiada, denunciaram na Receita Federal uns pequenos deslizes na contabilidade da minha firma. Enfim, minha vida virou de pernas para o ar.
Mas o que me deu mais raiva foi ver meu genro dando lição de moral, todo pimpão diante dessa maré de azar. Com um sorriso mal disfarçado no rosto, ontem ele me mostrou o artigo de um vagabundo, publicado num de site esquerdista, em que o cara associava a minha história ao comportamento dos Gorilas do Congo e às teorias de um filósofo austríaco. Esse sujeito eu vou processar, com certeza, e talvez assim consiga dinheiro para ir morar em Miami.
VICTOR LISBOA
"Não escrevo por achar que tenho talento, sequer para dizer algo importante, e sim por autocomplacência e descaramento: de todos os vícios e extravagâncias tolerados socialmente, escrever é o mais inofensivo. Logo, deixe-me abusar, aqui e no blog Minha Distopia