O procurador-geral da República, Roberto Gurgel, acabou confessando que não havia nenhuma prova contra José Dirceu no julgamento da Ação Penal 470, do suposto "mensalão". "Em nenhum momento nós apresentamos ele [Dirceu] passando recibo sobre uma determinada quantia ou uma ordem escrita dele para que tal pagamento fosse feito ao partido 'X' com a finalidade de angariar apoio do governo", disse Gurgel.
As declarações do procurador confirmam que o julgamento da AP 470 no Supremo Tribunal Federal (STF) não levou em conta os argumentos da defesa. Ele acabou revelando que já estava tudo decidido antes do julgamento começar. Não havia provas, mas eles tinham que condenar Dirceu e seus companheiros, como exigia a mídia golpista e a oposição tucana. Na tentativa de justificar o comportamento abjeto de parte do STF em todo o processo, Gurgel foi se complicando cada vez mais ao revelar que não tinham prova nenhuma para apresentar. "Havia uma série de elementos de prova que apontavam para a participação efetiva de Dirceu", disse. Como assim, "elementos de prova?". Ou tinha prova ou não tinha. "O que tinha não era prova direta", admitiu o procurador.
Daí em diante ele começou a relatar o que eram os tais elementos de prova. "Fazia-se um determinado acerto com algum partido e dizia-se: quem tem que bater o martelo é o José Dirceu. Aí, ou ele dava uma entrada rápida na sala ou alguém dava um telefonema e ele dizia: 'Está ok, pode fechar o acordo'", disse.
É bom que se lembre que nesta época Dirceu era só o ministro da Casa Civil do governo Lula, ou seja, o coordenador político do governo. Avalizar acordos políticos da base aliada era sua tarefa. Mas, Gurgel concluiu que isso era uma prova de que ele "chefiava uma quadrilha".
Além da falta de provas ou evidências contra Dirceu, confessada agora pelo próprio Gurgel, outro fato desmoraliza ainda mais as decisões do STF. É que a acusação central da AP 470, de que houve desvio de dinheiro público, através do Visanet, para a compra de votos em apoio às propostas do governo Lula, não tem fundamento. Em primeiro lugar porque a Visanet é uma empresa privada com matriz nos EUA. Ela repassava recursos para o Banco do Brasil e outros bancos associados para a divulgação do uso de seu cartão. Não eram, portanto, recursos públicos. Ora vejam, o ponto central da acusação - dinheiro público - não existe. E mais, uma ampla auditoria do Banco do Brasil comprovou que os recursos repassados ao banco pela empresa americana foram totalmente usados na propaganda do uso do cartão Visanet.
A farsa do mensalão tinha "jurado" que esse dinheiro foi usado para comprar votos. É que, segundo os golpistas, os empréstimos do PT, assinados por José Genoino, eram falsos. Para Gurgel e Joaquim Barbosa, atual presidente do STF e relator da AP 470, a tal "compra de votos", chefiada por Dirceu, foi feita com os recursos que tinham sido repassados pela Visanet para o Banco do Brasil. "Esqueceram" de falar da auditoria que dizia o contrário, que tudo foi usado em propaganda. "Esqueceram" de ler o que constava dos autos. É neste contexto de falta do que dizer que apareceu a teoria do domínio do fato para dar sustentação à farsa promovida pela quadrilha togada.
Desprovido de "prova direta", Gurgel citou a teoria do domínio do fato, segundo a qual "o autor não é só quem executa o crime, mas quem tem o poder de decidir sua realização". "A teoria do domínio do fato vem para dizer que essas provas 'indicam' que ele [Dirceu] se encontrava numa posição de liderança nesse sistema criminoso. Então, é possível, sim, responsabilizá-lo a despeito da inexistência da prova direta. Prova havia bastante do envolvimento dele", disse o procurador. Gurgel não deixa dúvida que o desenterro dessa teoria – que teve origem no regime nazista – foi realizado para encobrir "a inexistência de 'prova direta'".
"O grande desafio desse processo era provar a responsabilidade do chamado núcleo político. Porque essa prova é diferenciada. (...) Pessoas do topo da quadrilha têm sempre uma participação cuidadosa e provas diretas são praticamente impossíveis", confessou o procurador. Mais claro do que isso impossível. Não havia prova, mas tinha que condenar.
Tinham que garantir a farsa jurídica. Aí nem o domínio do fato dava conta. Tiveram que fazer uma interpretação deformada da própria teoria do domínio do fato. Sim, porque mesmo o jurista social-democrata alemão, Claus Roxin, que revisou a teoria de Hanz Welzel, criada na Alemanha nazista em 1939, disse, em passagem pelo Brasil, que o domínio do fato não dispensa a necessidade de apresentação de provas. Mas, Gurgel não se preocupou com isso. Comemorou a farsa como "um marco, talvez um divisor de águas na história de responsabilizar pessoas envolvidas em esquema de corrupção no país".
Concluindo a entrevista na "Folha de S. Paulo", o procurador falou do resultado conseguido com o julgamento. Disse aquilo que vários juristas já vinham concluindo. Que tudo não passou de um julgamento político. "Era uma das primeiras vezes que se responsabilizava todo um grupo que dominava o partido do governo", festejou Gurgel. "Quando nos defrontamos em qualquer investigação com um esquema criminoso muito amplo, você tem que optar, em determinado momento, por limitar essa investigação". "Limitou" a investigação, claro, ao que exigia a mídia golpista: a criminalização do PT e do governo Lula. Já contra o apadrinhado da mídia golpista, o ex-senador do Dem, Demóstenes Torres, com provas abundantes de sua parceria com o contraventor Carlinhos Cachoeira, o comportamento do procurador foi de abafar e engavetar o escândalo.
Em suma, o procurador e o relator da AP 470 usaram a "teoria" para substituir a necessidade de investigação e de apresentação de provas. Como disseram alguns analistas, a entrevista de Gurgel foi um verdadeiro tiro no pé do STF. O próprio Dirceu já está se embasando nas palavras que o procurador deixou escapar para reafirmar ua defesa e sua inocência.
Nenhum comentário:
Postar um comentário