A psicanálise, um peculiar método terapêutico que foi coqueluche no século XX, e se embasa na interpretação da fala mais ou menos espontânea do paciente segundo modelo teórico específico, continua relativamente forte em certos nichos: aqui, França e Buenos Aires são exemplos.
Porém, é bastante claro — na formação dos departamentos universitários, e para onde vai o dinheiro de pesquisa, num nível mundial –, que ela cada vez mais cede espaço para tentativas de finalmente transformar a psicologia numa ciência hard, matematicamente modelada e dotada de verificações experimentais universais e repetíveis.
Em meio a esse cenário, a psicanálise perde seu lugar nas universidades e acaba espremida em institutos privados e autocredenciados, onde gente com uma ideia de chique (talvez meio datada) muitas vezes a busca estudar com élan de atividade extracurricular da vida, como quem faz cerâmica ou tapeçaria.
Quando em algumas conversas levanto críticas (por exemplo, as de Wittgenstein, num nível epistemológico) com relação à psicanálise, uma reação comum e digna de respeito é martelada: a psicanálise é o último bastião da alma num admirável mundo novo de epifenomenalismo, funcionalismo e, principalmente, fisicalismo. Explico. O viés psicanalítico é tido por seus defensores como mais humano do que a mecânica psiquiátrica e das neurociências, e mais propriamente profundo do que o behaviorismo 2.0 da psicologia cognitiva. Enfim, não interessa a base ou sustentação física do fenômeno mental por excelência subjetivo, é dele e apenas dele que trata o processo de análise.
Essas outras disciplinas estão preocupadas com dados grosseiros, informações brutas, tais como indícios químicos e físicos na caixola, ou comportamentos mensuráveis — nem que seja por questionários e testes (cuja elaboração, por si só, mesmo na psicologia mais poindexteriana e com pretensões de método científico clássico, está cheia de labirintos epistêmicos insolúveis, que vão das determinações linguísticas ao processo de adaptação seletiva, e toda sorte de complexidade biológica, matemática e estatística até um limiar quase autodeclaradamente místico, que, ironicamente, acaba por soar tão charlatão quanto o autoconfesso próprio “Lacan”. Essas aspas aí também só para gerar frisson lanacal, não repare.)
Esse ponto é digno de respeito porque realmente há problemas com a psiquiatria e seu manual principal, claramente voltado para o benefício da indústria farmacêutica e não da saúde pública (a psicanálise não tem interesse econômico? Bom para a isenção dela!).
E não só o viés econômico assola a “ciência dura”: por maiores que sejam as conquistas da neurociência e das outras ciências cognitivas, o fato é que não há evidências ou provas dos fundamentos assumidos, tais como o fisicalismo. Bastam algumas aulas de filosofia da mente para se entender que todas as tentativas usuais de explicação da mente estão carregadas de problemas complexos. Nenhuma delas “provada” sob nenhuma concepção adequada do termo.
O sucesso da mecânica newtoniana em explicar a maioria dos fenômenos mecânicos corriqueiros de forma alguma é prova de que a noção de espaço newtoniano é o caso. Algo semelhante ocorre hoje com as ciências cognitivas, que se mostram efetivas em explicar determinados fenômenos, mas que a partir disso querem esfregar, de lambuja, seus fundamentos injustificados em nossas caras.
Mas a psicanálise, com sua “crítica literária” do discurso do paciente, sujeito tornado objeto de hermenêutica bizantina, é mesmo o tipo de contraposição adequada aos métodos cada vez mais vitoriosos das ciências cognitivas? Em vez da análise meticulosa (e tediosa) dos dados brutos, um espaguete teórico em torno do fenômeno complexo do discurso, em amostras breves e relativamente aleatórias, com os vieses levemente disfarçados com suposto rigor conceitual?
Pessoalmente acredito, como única possibilidade de combate a essa tendência mecanicista, no método introspectivo com a instrumentalização de métodos orientais de meditação — instrumento aperfeiçoado e aguçado da introspecção, que é justamente o que faltava nas primordiais tentativas frustradas de Wilhelm Wundt e Edward Titchener.
Ainda que muito se fale nessas conexões em certos âmbitos, e dentro da ciência cognitiva mesmo, o desafio da crença metafísica no monismo fisicalista (e no mais insidioso e complexo funcionalismo) está muito longe de ocorrer nesse contexto. Mas ainda virá. Mas dificilmente das emoções baratas do interpretatio furioso dos conceitos psicanalíticos.
A moribunda psicanálise raramente tenta, hoje, posar como ciência, e de fato há uma tendência nesses círculos de certa “discriminação engenheira”, isto é, de zombar das tentativas meio nerds (é verdade) de colocar fios, tubos de ensaio e estatísticas na mente.
Por mais que a moda entre os jovens já seja, por mais de 10 anos, o geek desbragado, quase evangélico da ciência e seguidor do Neil Degrasse Tyson, ou algo do tipinho… o psicanalista segue o arquétipo do intelectual sempre de alguma forma ligado a algum tipo datado de classicismo pós-iluminista/pós-darwinista, e hype de performer pós-estruturalista/pós-moderno, que utiliza todo um arcabouço cultural e artístico, histórico e antropológico, adicionado a uma série de conceitos não óbvios dentro de uma teoria que sempre soa um pouco deliberadamente demais complexa — um uso quase totêmico da polissemia e do jargão, definições que “requerem anos de clínica e estudo para depreender” –, tudo isso para extrair do indivíduo certas pistas sobre, em particular, tópicos “ocultos” dele, sobre ele mesmo, para ele mesmo. Algum viés terapêutico sobrevive, em algum lugar. No mais das vezes aponta-se o quanto é frustrado sexualmente, ou alguma platitude dessas — isso, claro, bem lá no fundo, escondido por trás de uma pilha de verborragia.
Trata-se, enfim, de outra forma de cultura de epifania, em que coisas sempre significam outras coisas, numa dança infinita de anagramas simbólicos, salientes particularmente se nos deixam de cabelos eriçados, ou se apelam para nosso cabritismo – horror ou lascívia, e, preferencialmente, ambos.
(Podemos até desconfiar se na tentativa toda não há uma “cabala do pequeno outro ‘a’”, não do outro biggus dickus, Deus – se é que vamos nos enveredar em imputar complexos judaicos milenares implícitos na verve freudiana. O fanático poder argumentativo de Freud, que realmente escrevia extremamente bem, é tão talmúdico quanto brilha de cristais de cocaína e ruas recém iluminadas por eletricidade. É o paradigma da ciência vitoriana, com o ethos judaico reprimido mas bem presente, se deparando com a complexidade da modernidade — cosmopolita, de cidade grande, num nível nunca antes visto — pela primeira vez.)
Mas e a penetração da teoria psicanalítica na cultura? No título, brinquei com Freud como um molestador, mas quem me explicou pela primeira vez quem foi Dr. Freud e o que era o complexo de Édipo foi, ora, minha mãe.
Nada demais nisso, e se com você não foi assim, foi provavelmente pela tela da TV, no comentário de alguém entrevistado pelo Jô Soares, na novela Mandala (Globo, 1987-88), ou sei lá, lendo Tio Patinhas.
E esse é o aspecto que considero mais interessante da teoria psicanalítica: seu efeito na cultura, em feedback. Embora tenha claramente se beneficiado do modismo em torno de sua teoria, Freud se horrorizou com as primeiras tentativas de artistas de incorporar versões de almanaque da psicanálise em obras de arte. Ora, o que seria o movimento surrealista senão exatamente uma tentativa de transformar em arte a exposição pública do objeto de análise?
Afinal, a teoria tinha um apelo para as massas que misturava histórias de detetive e literatura erótica.
Essa retroalimentação, o Ouroboros incestuoso do porn epistêmico — isto é, o frisson quase sexual com a contínua descoberta de sentidos (também estes, no mais das vezes, sexuais) transformou a teoria psicanalítica ela mesma num objeto de fetiche. E esse aspecto sexy da latência de um “curandeiro da histeria” que masturba sua (o feminino aqui proposital) paciente de forma puramente platônica, e bem verbalmente voyeurística, torna-se aos poucos, no século XX, o espetáculo do pensador público que acata o pós-pós todo e os estudos culturais. Um polemista Vaudeville tal como Slavos Žižek, ironicamente glorificando, via Lacan e, pasmem, Marx, a análise do impacto cultural da psicanálise – seja este, numa dada obra, propositado ou inadvertido.
Da psicanálise pelo artista no surrealismo também marxista de um Buñuel, por exemplo, nos voltamos ao psicanalista público da cultura como bobo da corte. E os dois extremos se encontram num beijo apaixonado do Alien (desenhado como fálico e vaginal, simultaneamente) com a Tenente Ripley.
E isso, curiosamente, acaba um espetáculo cativante — também por sua inclusão num momento histórico, e seu apelo de nicho.
Isto é, não só a arte embute deliberadamente discurso psicanalítico, em incontáveis exemplos no séc XX; cada vez é mais aceitável nos estudos culturais utilizar a bolsa psicanalítica do Gato Félix para tudo: análise da trama e do autor, zeitgeist e consciência histórica — e assumindo o ponto de vista de analista divino, panorâmico, da produção cultural e da própria cultura.
Em meio a isso, nas notícias, a piada freudiana pronta: o charuto de Clinton, que foi além da função simbólica, príncipes que querem ser o OB de suas amantes, Anthony Weiner (Armando Pinto, ou algo pior). Na produção textual acadêmica, o ato falho constantemente imortalizado e glorificado, durante o próprio ato da teorização, como “riqueza polissêmenca”, ou algo do typo — ou, mais atual, autocorreção automática.
O psicanalista talvez busque uma união topológica do real com o simbólico e o imaginário, e diga que enfim, esses elementos teóricos são fatos, não invenções psicanalíticas. Mas, que diferença faz? Não é como se, fora de si mesma, ela sirva para qualquer coisa senão vender o frisson de si própria, junto com todo o universo de possibilidades do universo de frissons. Se revela estruturas subjacentes ou as incita, inventa, produz: tanto faz.
Freud, com sua pretensão vitoriana de ciência certamente se horrorizaria com a kitschificação via, por exemplo, Hitchcock – outro que descaradamente usava uma versão de almanaque das teorias para apimentar enredos, diálogos cheios de entrelinhas e até cinematografia. Filmes ótimos, aconchegantemente datados até na importância que dão a pirações freudianas!
Mas o pensador cultural hoje talvez glorifique exatamente a psicanálise pop, ou do pop, com o objetivo de incluí-la na teoria, ou intensificá-la, ou apenas, quem sabe, angariar simpatia. Afinal de contas os quadris da Shakira não mentem.
E isso também ocorre com o sexo e a morte no horror lynchiano. Um diretor cuja meditação transcendental e o compromisso quase asceta e “livre de ego” com a não interpretação da própria obra não enganam ninguém quanto à deliberação ultrassofisticada (e pós-moderninha) do simbolismo profícuo em sua obra, grande parte dele de viés escancaradamente psicanalítico.
E ninguém domina o pânico irracional da tela como Lynch. Passamos algumas vezes duas horas sem entender nada, mas só quem não arrepia é morto. E olhe lá.
O quão explícito será o porn epistêmico psicanalítico numa dada obra pode variar tanto quanto das entrelinhas do cinema ultralatente da era do código de decência ao smut gonzo, o reality show efetivamente pornográfico. Que, confessemos a nossos parceiros, está cheio de pirações ao estilo “Freud Explica” — afinal, a mente simbólica e fruitiva também rende punheta.
Mas esta lacanagem toda, esse Guia do Pervertido para o Cinema (o título do vídeo ele mesmo demonstrando, ainda que ironicamente, a lubricidade, agora feita explícita e desavergonhada, com a aplicação da teoria na cultura — mesmo que “perversão” sempre seja polissêmico técnico da psicanálise e julgamento moral na linguagem cotidiana, algo que não escapa ao piadista) indicam mesmo um sucesso inesperado da teoria freudiana.
A sua efetividade terapêutica segue irrelevante, seja porque a teoria é naturalmente antitética à mensuração, seja porque seus resultados são definidos de forma circular. Mas também porque, independente disso, que surge como mais importante, se mantém viva como, no mínimo, fetiche cultural.
Mas não só isso: se temos um exemplo do poder da teoria freudiana, ele está na aterrorizantemente efetiva psicologia de massas empregada em publicidade e relações públicas ao longo do século XX. Freud de fato conquistou algum talismã de atrair ou repelir o que quer que seja esfregado com certos fluídos teóricos, isso não podemos negar. O sigilo do gênio abraâmico segue ungido.
Com o passar dos anos até sua velhice Freud se tornou cada vez mais cínico e pessimista com a natureza humana. Desconheço o quanto ele considerou o impacto de expor sua teoria, e versões mastigadas desta, sobre as massas. Se é que ele cogitava coisas nesse sentido senão para defender a pureza de seus argumentos: a pretensão original era científica, revelar o funcionamento da mente, não angariar discípulos, ou ser uma espécie de Kardashian do intelecto — por mais que a psicanálise desde o início tenha sido uma competição por espaço na mente dos intelectuais “da era do rádio”, e, ora, moda.
Ainda que ele ele, todos compreendamos, nunca tenha querido que ela se tornasse objeto de fascínio por motivos frívolos e talvez torpes. Isso ele de fato nunca esperou. Independente disso, o voyeurismo analítico (platônico, linguístico, cabalístico, assunto sério como a Alemanha) inexoravelmente paira sobre a cultura, embutido em nossos olhos agora treinados, e viciados, pela tara simbólica do totem e tabu do judeu vienense com um charuto na boca.
Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia.
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