A banalização do mal

Ao analisar a história do criminoso nazista Adolf Eichmann, a filósofa alemã Hannah Arendt chamou de “a banalidade do mal” os signos de pretensa normalidade de que se revestiam o planejamento e a execução do envio de levas de judeus para os campos de extermínio. Eichmann era visto como um bom funcionário, zeloso cumpridor de ordens. Numa palavra: era um sujeito normal.

Corta para o morro da Congonha, bairro de Madureira, zona norte do Rio de Janeiro. Manhã de domingo. A auxiliar de serviços gerais Cláudia da Silva Ferreira, 38 anos, mãe de quatro filhos, mulher de um vigilante, saiu de casa para comprar pão e mortadela. A caminho da padaria, levou dois tiros —um no pescoço, outro nas costas. Tombou.

Abre parênteses: as versões sobre o que aconteceu minutos antes são divergentes. Na versão dos agentes do Estado, Cláudia atravessou uma troca de tiros entre policiais e traficantes. No relato de familiares e vizinhos, não houve tiroteio. Só a polícia atirou na direção de Cláudia. Fecha parênteses.

Dois subtenentes e um soldado da Polícia Militar carioca aproximaram-se de Cláudia. Estirada no chão, ela sangrava. Os policiais a recolheram. A pretexto de prestar-lhe socorro, enfiaram-na no porta-malas de uma viatura. E partiram, com a baleada a sacolejar no compartimento de bagagem.

Imterrompa-se por um instante a narrativa para sugerir ao leitor um exercício singelo de imaginação: suponha que uma moradora bem-nascida da zona Sul resolvesse sair do seu apartamento chique em Ipanema para comprar pão na panificadora da esquina. Imagine essa moradora branca de um bairro elegante sendo socorrida por policiais depois de levar dois hipotéticos tiros. Ela seria enfiada no porta-malas? Improvável. Seria confortavelmente acomodada no banco de trás da viatura. Talvez chamassem para ela uma ambulância.

Voltemos à cena real, iniciada em Madureira. No trajeto para o hospital, a tampa do porta-malas abriu. Com o carro em movimento, a trabalhadora pobre e negra do morro da Congonha deslizou para o asfalto. Foi arrastada por mais de 200 metros. Ao parar no semáforo, os policiais foram avisados de que uma mulher, presa por uma peça de roupa, pendia do lado de fora da viatura. Desceram, apanharam a “mercadoria”, devolveram-na ao porta-malas, fecharam a tampa e seguiram viagem.

Por mal dos pecados, um motorista que vinha num carro logo atrás filmou tudo com a câmera do celular. Sem essa filmagem, a coisa passaria como mais uma invisível operação de rotina da PM do Rio. Ação meritória, já que os policiais “socorriam” uma vítima de “balas perdidas”. Não fosse pela exibição das cenas que feriram a rotina como uma lâmina fria, a vida dos três policiais continuaria resplandecendo de normalidade.

Retorne-se, por oportuno, à filósofa alemã Hannah Arendt e seu relato sobre Adolf Eichmann. Ao ser julgado em Jerusalém, o criminoso nazista contou detalhes de uma reunião de oficiais da SS, a polícia de Hitler. Eles planejavam a execução de judeus, chamada de “solução final”. Depois de acertados todos os detalhes, serviram-se de aperitivos. Foram à mesa de almoço. Houve o que Eichmann chamou de “uma pequena e íntima reunião social”.

Cláudia da Silva Ferreira está morta. Os policiais que a trataram com desumanidade estão presos. A defesa já prepara o pedido de habeas corpus. Sustenta-se que os três não podem ser punidos por terem “socorrido” uma vítima. Sim, ela foi arrastada do lado de fora da viatura. Mas isso foi uma “fatalidade”.

Pode-se antever a defesa oral dos advogados num eventual tribunal de júri. Fulano é um bom homem. Na noite daquele domingo, ao chegar em casa, a mulher perguntou como fora o seu dia de trabalho. E ele: “Tudo normal, meu amor!”.

Beltrano é um pai exemplar. Quando entrou em casa, o filho acordou com o barulho da porta. E ele brincou com seu caçula antes de recolocá-lo na cama. Ah, o cicrano é um filho prestimoso. Na segunda-feira, antes de ser preso injustamente, fora comprar pão quentinho na padaria a pedido da mãe.

O tratamento dispensado pelos policiais à trabalhadora Cláudia da Silva Ferreira, moradora do morro da Congonha, não é inusual, eis o que se deseja realçar aqui. Assim são tratados pela polícia os brasileiros pobres que habitam os morros, as favelas e os bairros sujos dos fundões do país.

A cena do Rio está impregnada de uma insuportável normalidade. Fora da rotina, apenas a filmagem. As imagens constituem uma evidência —mais uma— de que algo de muito anormal precisa suceder para que o Brasil vire um país verdadeiramente normal. No caso da polícia, a situação ideal será atingida no dia em que o que vale para o morro for válido também para Ipanema.

por Josias de Souza

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