A cultura digital não é o vilão da história. Ela nos permite explorar nossa capacidade humana de sermos poliglotas
//Por Marisa Lajolo
Para qualquer lado que a gente olhe, a qualquer hora, tem gente teclando. Teclando celulares, teclando tablets, teclando as mais variadas engenhocas digitais. Quadradas ou retangulares, com ou sem capa, cabem no bolso e na bolsa. Na mão de gente grande e de gente pequena. Mas, antes que a gente se derreta de susto... Vamos recorrer aos belos versos de Manuel Monteiro:
Nada é novo sobre a Terra
Nem permanece hodierno
Logo fica obsoleto
O que agora é moderno
Se hoje vai sendo ontem
Só o futuro é eterno¹
O assunto do cordel de Manuel Monteiro são inscrições rupestres, isto é, desenhos em grandes rochas. O Lajedo de Pai Mateus, que o poema celebra, fica em Cabaceiras, cidade paraibana.
E são inscrições rupestres que dão o link para a cultura digital.
A cultura digital chegou para ficar. Os mais jovens que o digam, não é mesmo?
Mas não é preciso morrer de susto. Há muitos milhares de anos, a humanidade vem inventando linguagens e escritas. Umas sucedem-se às outras, e todas convivem. Se fala é voz e a voz é efêmera, a escrita almeja a permanência. Como as inscrições de Lajedo de Pai Mateus ou da Serra da Capivara (no Piauí), em que antigos habitantes de nossa terra deixaram registrados seus medos, seus sonhos, suas esperanças.²
É nessa longa trajetória de escritas e de objetos de escrita que chegam os livros eletrônicos, os blogs e sites, as redes sociais. Sorte nossa, que vivemos para ver (e viver) isso tudo...! Vivemos um tempo em que todos, particularmente crianças e jovens, escrevem e leem muito. Pudera! São usuários nativos das linguagens digitais! É na carona delas que, hoje, nossa língua escrita se renova e se redesenha.
Mas a gente às vezes desconfia: o livro vai acabar? o que vai ser da literatura?
Talvez a literatura infantil, gênero com o qual (como professores de crianças) temos intimidade, sugira algumas respostas. Pois a literatura infantil, mesmo quando circulando impressa em livros, é pioneira na utilização de certos traços que se intensificam na cultura digital. Como ocorre nessa, a literatura infantil articula linguagens: geralmente ilustrados, livros para crianças costumam sobrepor a linguagem verbal e a visual.
Cores, traços e formas ilustram histórias, dão visibilidade a poemas. Ou, ao contrário, a partir de imagens, palavras se articulam em enredos e em poemas. Na cultura do manuscrito, a articulação entre o verbal e o visual é simples. Nossos alunos desenham histórias e ilustram cartas que escrevem, por exemplo, a escritores. A mão que escreve é a mesma que desenha. Algumas teorias, aliás, dizem que a escrita originou-se do desenho.
Será?
Mas, se na cultura do manuscrito o verbal e o visual podem nascer do mesmo gesto, na cultura do impresso foi o desenvolvimento da tecnologia que possibilitou sofisticação cada vez maior na produção de livros. Inclusive, e talvez sobretudo, na produção de livros infantis.
Esses são alguns dos fatores que permitem ver a literatura infantil como campo privilegiado para a discussão das consequências da cultura digital na cultura do livro impresso. E ensinam que a cultura digital não é o vilão da história. Ela nos permite explorar nossa capacidade humana (inata) de sermos poliglotas.
A articulação de linguagens em livros para crianças manifesta-se com frequência no interior do próprio gênero. Faz parte das histórias. Alice, a personagem que dá nome à obra-prima de Lewis Carroll (Aventuras de Alice no País das Maravilhas), logo no começo da história, registra a importância da ilustração em livros infantis, ao se queixar que era muito sem graça o livro que a irmã estava lendo:
"Alice estava começando a cansar-se de fıcar sentada junto à ırmã na margem do riacho, e de não ter nada para fazer. Uma ou duas vezes tinha dado uma olhada no livro que a irmã estava lendo, mas ele não tinha figura nem conversa.
– Pra que serve um livro sem figura nem conversa? – pensou Alice."³
Se vem do longínquo ano de 1865 a voz dessa encantadora inglesinha que quer livros com diálogos e figuras, opinião similar se registra em um poema brasileiro de 1910:
– P'ra mim, livro bonito
É aquele que tem figuras,
P'ra você não é, Carlito?
Ou seja, a literatura trabalhou sempre com a simultaneidade de linguagens, responsável, tantas vezes, pela pluralidade dos sentidos daquilo que lemos.
Ou seja, a razão está mesmo é com Manuel Monteiro: Nada É Novo sobre a Terra.
1 e 2 Conheça o Enigma das Inscrições Rupestres do Lajedo de Pai Mateus. Manuel Monteiro. Campina Grande. 2002
3 Alice no País das Maravilhas, Il. Lewis Carroll. Trad. Ana Maria Machado, ilustr. Jô de Oliveira. SP: Ed. Ática.
3ª Ed. 2000. p. 13-14
4 Páginas Infantis. Presciliana Duarte Almeida. SP: Typografia Brazil
de Rothschild & Co.1910. p. 11-12
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