Contrastes
Uma capital de encantos e desigualdades, igual ao Brasil
Fortaleza comemora mais uma primavera, temos de pensar a cidade para as próximas gerações
Qual a Fortaleza dos nossos sonhos? De qual dispomos? Com intuito de retratar Fortaleza a partir da visão de seus moradores, o que eles esperam dessa cidade cheia de encantos, mas marcada por desigualdades, o Diário do Nordeste irá publicar, a partir de hoje, a série "Fortaleza: 288 anos".
A quinta capital mais desigual do mundo - conforme o relatório das Nações Unidas "State of the World Cities 201/2011: Bridging the Urban Divide" - é também a sétima mais
violenta - segundo pesquisa feita pelo Conselho Cidadão para a Segurança Pública e Justiça Penal, do México. Esses dois dados, intrinsecamente ligados, refletem a sensação de insegurança. O abismo social criado faz com que os índices de violência cresçam.
No livro Perfil Socioeconômico de Fortaleza, do Instituto de Pesquisa Estratégia Econômica do Ceará (Ipece), a disparidade fica mais evidente. Enquanto no Meireles, bairro mais rico da cidade, a renda média pessoal é de R$ 3.659,54, no Conjunto Palmeiras, apontado como o mais pobre, é de R$ 239,25.
A situação é ainda mais grave em virtude de Fortaleza ser a capital mais densamente povoada do Brasil, e a quarta em número de aglomerados subnormais - ocupações irregulares e/ou ilegais vivendo com serviços públicos precários -, com uma população de 369.370 habitantes (16% da população) vivendo em condições mínimas de vida, conforme o Censo Demográfico de 2010, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
Paisagem
No bairro Pirambu, sétimo mais pobre da Capital, com renda média pessoal de R$ 340,36, a paisagem retrata bem esse contraste. Da praia, é possível observar as casas simples da comunidade contrastando com os luxuosos prédios da Beira-Mar.
O pescador Francinaldo Silva Lima, 37, comenta que se sente mais à vontade no bairro do que em outros locais da cidade. "Fortaleza só valoriza o rico. Ela não quer saber do pessoal pobre. Prefiro aqui, que a gente já é acostumado desde pequeno", afirma.
Da jangada, essa desproporção fica mais visível. Na medida em que se aproxima da Barra do Ceará, o cenário vai mudando. Em vez dos arranha-céus, predominam casas simples. No Pirambu, o lazer dos moradores é o calçadão da Vila do Mar. "Antes, não tinha nada. Era só favela", ressalta Francinaldo, destacado que melhorou bastante.
Os contrastes que marcam Fortaleza vão muito além da Capital. No livro Sertão Brabo, publicado em 1965, padre Antônio Batista Vieira, do município de Várzea Alegre, descrevia Fortaleza como uma cidade caprichosa, em constante contraste com o sertão. Já naquela época, o religioso destacava que o município tinha duas faces e duas almas.
"Fortaleza tem o Náutico e tem o Pirambu. Fortaleza tem a Universidade e tem o São João do Tauape. Fortaleza do 'society' e das mães tuberculosas. Fortaleza dos 'rabos-de-burro' e dos menores abandonados. É assim que o sertão olha para Fortaleza. Escandalizado. Com espanto. Com indignação e tristeza, até. Com vontade de que sua capital fosse mais séria. Mais pudica. Mais humana", diz trecho do livro.
José Borzacchiello, geógrafo e professor titular da Universidade Federal do Ceará (UFC), comenta que a cidade cresce para todas as direções. "Fortaleza parece infinita, bela, feia, rica e pobre, excessivamente contrastante. Sua dinâmica urbana desafia nossa memória", constata.
Rememorando Mário Quintana, quando diz "olho o mapa da cidade como quem examinasse anatomia de um corpo", o especialista define o da Capital como cheio de anomalias. "Fortaleza é injusta e desigual. A constatação de seus contrastes é revelada em resultados censitários, pesquisas, números, gráficos. Entretanto, caminhar entre suas ruas é fundamental no exercício de apreensão da cidade real. Sigo suas formas, vislumbro as mais robustas, as magras, decorrentes de histórica dívida social. O conteúdo dos lugares está entranhado em múltiplas relações que a imagem em si não dá conta", ressalta.
Caleidoscópio urbano
Em percursos pela cidade, Borzacchiello relata que distingue a variedade de cores que formam esse caleidoscópio urbano. "Aguço meu olfato e diferencio odores e perfumes, ouço sons reveladores: gritos, pregões, badaladas de sinos, vozerio da turba que se acotovela nos becos e ruas, sentir o empurra-empurra dos terminais de ônibus, o ruído educado dos vendedores e compradores dos shoppings", frisa.
Ele acrescenta que, sem trauma, a cidade convive uma relação de amor dividida entre o mar e o sertão. Para ele, o sertão é permanência da alma da cidade: forró, São João, paçoca, carne de sol, rapadura, alfenim. Enquanto em Fortaleza terra e mar se completam, numa cumplicidade contraditória. "A cidade é partida em todos os sentidos. A cidade completa mais um ano de vida e continuamos alterando sua fisionomia", diz.
Segurança cidadã
Segundo o secretário municipal de Segurança Social, Francisco José Veras, a Prefeitura busca uma segurança pública cidadã, abordando a tranquilidade social. "O que tentamos fazer é ampliar os fatores de proteção, como a educação, o lazer, a cidadania. Investir na qualidade de vida dessas pessoas, reduzindo a vulnerabilidade social", afirma.
Ainda de acordo com Veras, para garantir a segurança social, cabe ao Município melhorar seus serviços. "É dar a possibilidade das pessoas estarem nas ruas sem essa sensação de medo. Quando coloca a população na rua, evita que a marginalidade esteja no mesmo local. Se a população não está na rua, é porque o ambiente não é favorável, porque a marginalidade está ocupando aquele espaço", diz.
O gestor destaca o Programa Crack, É Possível. "Vamos abrir mais uma frente para entrar com políticas públicas de fatores de proteção e de redução dos fatores de risco. Primeiramente, o projeto vai funcionar no Serviluz, Quintino Cunha e São Miguel", revela.
Monumentos históricos preservam a memória
Embora haja controvérsias em relação à data, conforme o calendário oficial, Fortaleza comemora, hoje, 288 anos. No que diz respeito à memória, no entanto, o que a cidade preserva? O Forte de Schoonenborch, fundado pelos holandeses, em 1649, é exemplo de uma das mais antigas edificações. Após a expulsão dos holandeses, o forte foi rebatizado catolicamente pela Coroa Portuguesa, em 1654, com o nome de Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Atualmente, ele abriga a 10ª Região Militar.
Protegido pelo Instituto do Patrimônio Histórico, Artístico Nacional (Iphan), tem ainda o Theatro José de Alencar (1908), a casa onde José de Alencar nasceu (1880), o antigo prédio da Assembleia Provincial, onde funciona o Museu do Ceará (1857), entre outros. Erick Assis, professor de História da Universidade Estadual do Ceará (Uece), destaca que uma monumentalização do pensamento faz congelar e cristalizar alguns locais como os representantes da memória e história de Fortaleza.
"Quem somos nós para negligenciar uma Lagoa de Messejana? Da Parangaba? Da Maraponga e suas sociabilidades historicamente construídas? As antiguíssimas e interessantes feiras livres? Os poucos campos de futebol ainda resistentes a especulações imobiliárias? O pertencimento a uma cidade só tem sentido se seus moradores conseguirem ser reconhecidos", frisa.
Com tantos problemas, o professor afirma que Fortaleza tem o que comemorar, mas também o que lamentar. "Nossa cidade tem espaços de muita beleza, há um encantamento pela poesia que determinadas regiões sugerem. Mas há também regiões de Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) baixíssimo, é a Fortaleza que nos deixa impactados negativamente", salienta.
Projeto
Para mostrar as histórias de personagens de diferentes bairros da cidade, com relatos particulares que poucos conhecem, mas ajudaram, ano após ano, a compor a sua própria personalidade e percepção de mundo, o Diário do Nordeste lança o hotsite "Fortaleza: seus rosto, seus caminhos", sobre o aniversário de 288 anos de Fortaleza.
O especial traz a visão do prefeito de Fortaleza, Roberto Cláudio, do empresário Carlos Fujita, do cineasta Halder Gomes, do humorista Tirulipa e do músico Waldonys. Cada um retrata as singularidades de Fortaleza e o que a metrópole representa em sua vida.
Os personagens, uns mais, outros menos famosos, respondem a perguntas como "que local de Fortaleza mais o marcou?", "o que você tanto gosta nesta cidade?", "que experiências aqui vividas mais o impressionaram?" e "qual sua visão sobre o crescimento da cidade?".
O resultado do trabalho são vários rostos e histórias retratados, como cabe a uma cidade plural e complexa como Fortaleza, mas recheada de carisma e sentimento.
Além do conteúdo do hotsite, o Diário do Nordeste também lança hoje caderno especial com mais entrevistas e conteúdo exclusivo, com o olhar do pesquisador Miguel Ângelo de Azevedo, o Nirez, do gestor Joaquim Melo, do jornalista Paulo Linhares, do grafiteiro Bulan, do artista plástico Estrigas, do poeta Edmar Freitas e do turismólogo Gerson Linhares.