A noção de que os homens são sexualmente visuais e as mulheres sinestésicas e menos suscetíveis a imagens acabou.
Este é um dos muitos resultados de décadas de conquistas da emancipação feminina, importante capítulo do processo civilizatório, longe de terminar, sobretudo nos rincões do Brasil, onde muitas mulheres ainda vivem na Idade Média, fora do alcance e compreensão do bem-intencionado feminismo social media, das slutwalkers e do Rodrigo Constantino.
Quero falar sobre o senso comum de que homens consomem pornografia e mulheres não. Mas posso, num outro momento, se instado, debater as relações hodiernas entre feminismo, imagem, verbo e fundamentalismo.
O fim da Guerra Fria libertou as mulheres do leste europeu. Nos últimos 20 anos elas passaram a dominar a cena da moda e da indústria pornográfica. O capitalismo as levou ao centro de Nova York para os lap dances no Flashdancers, às passarelas do eixo Paris-Milão e aos filmes do X-Art, o site que acaba de aportar no Brasil.
Sim, o desejável seria que elas tivessem tido a opção de ser também cientistas, jornalistas, astronautas, CEOs e chefes de Estado, mas a experiência comunista não colaborou. Hoje, os movimentos Femen e as Pussy Riots são sintomas de sociedades que não passaram pela depuração de um pensamento feminista mais refletido — são, portanto, inócuos.
“Libertou” é uma palavra controversa. A maioria dos americanos acha que consumir pornografia é moralmente reprovável, tendência que vem mudando, segundo o The Atlantic: cada vez mais mulheres (3 em cada 10 acessos) e jovens (muita gente com menos de 30 acha OK) consomem sem culpa.
Ressalva rápida: pornografia = internet.
Tirando as engrenagens de busca e as redes sociais, que nasceram com a internet, não há uma indústria que tenha sofrido tantas transformações como a pornográfica. Sim, a fonográfica, a cinematográfica, a do turismo e da mídia estão ali, pari passu.
Além disso, pornografia deixou de ser primazia da indústria: o volume de imagem produzido e compartilhado por amadores, muitas vezes para consumo próprio, é infinitamente maior do que o do circuito comercial. Com isso, uma mudança estética entrou em curso e a linguagem amadora começa a ser apropriada pela indústria.
O X-Art, com o slogan Beautiful Erotica, tenta ir mais ou menos por aí. Suaviza o hardcore com um elenco de “modelos” multinacionais, quase sempre tchecas, muito jovens, “enredos” que reproduzem intercursos “normais”, luz “natural” e, pelo menos no começo do empreendimento, a super contribuição de James Deen, o ator que virou celebridade mundial, chamado por Lars Von Trier para atuar em Ninfomaníaca.
Entrevistei o professor Hugo Schwyzer para entender o fenômeno James Deen e a participação feminina:
“Sim. James Deen tem uma base de fãs quase inteiramente feminina. A Wicked Pictures estima que 40% de seus clientes são mulheres, o dobro do que era há apenas cinco anos. A participação feminina nas convenções da indústria adulta saltou de 10% há uma década para 40-45% dos participantes hoje.”
Conversei com a dona do site, Colette Field, numa visita à Erotika Fair, em São Paulo, na sexta (28/3). Não é a minha primeira vez na feira, você sabe.
Ela diz que o negócio fatura algo em torno de U$ 12 milhões por ano, muito concentrado nos EUA, busca atuação global, daí o investimento na versão em português, tardio, possivelmente motivado pela bolha Brasil que já estourou. O modelo de negócio é 100% pago, não depende de publicidade. Aqui terá dificuldades, o mercado é potencialmente grande, mas muito imaturo.
Quem pagará R$ 100 pelo acesso mensal?
Colette está sempre escoltada pela modelo Franziska Facella, que assumiu funções administrativas no grupo depois de inestimáveis contribuições, ambas mantém boa química, como mostram as fotos de Ramón Vasconcelos ao longo deste post. Colette diz que não tem problema com a palavra “pornografia”, mas seu marido/sócio “prefere evitar”.
Comentário rápido: a diferença entre pornografia e erotismo depende do moralismo de quem vende e consome.
Ah, a globalizacão. O mundo é plano também na Erotika Fair de São Paulo. O site de câmeras ao vivo CAM4 recruta performers no Brasil, a empresa Sophie apresenta sistema de vendas de produtos eróticos a la Avon/Tupperware (com reuniões domésticas entre amigas), a Star Limousines oferece suas limos Oldsmobile a preços módicos, o Desire Resorts sorteia viagens a Cancún para casais swingers que podem se interessar também pelos clubes Apice e Scandallo.
Do outro lado da rua, em que fica o stand envidraçado da X-Art — onde as modelos gringas bebem whisky no ar-condicionado — fica o recinto das jogadoras brasileiras de futebol de salão (no sabão) e quase ao mesmo tempo lavadoras de carros, seminuas como as gringas, funções alternadas em intervalos de duas horas, atrações mais prestigiadas do evento.
Não há espaço para reproduzir a história de uma delas: vida comum, família pobre, desglamourizada, batalhadora, 30 anos, casada há 11 anos com um policial que prendeu um importante traficante internacional, sem filhos, adora viajar aos Estados Unidos, silicone, choro fortuito, criticada por estar ali com pouca roupa na versão atualizada da banheira do Gugu, recrutada por “agência” via Facebook, bonita e real, vivendo as contradições e dificuldades de uma mulher paulistana. Ela precisa de grana, é feliz quando consome.
A poucos passos dali o japonês ninja Toshi San, mestre do shibari (técnica milenar de amarração com cordas) dá conta de uma moça anabolizada diante dos flashes. “Vem do Japão feudal. Diferentemente do ocidente, não havia algemas ou bolas de ferro e os prisioneiros eram imobilizados assim. Eu aprendi em tutoriais na internet. Não sei dizer quando surgiu o fetiche por restrição de movimentos”.
Sweetie Bird, da trupe do X-plastic, famosa por seus shows burlescos e programas de culinária, posou para o Ramón dentro de um boudoir improvisado, junto com o Pietro Luigi, um jovem desenhista punk que conheço de outros carnavais e que agora conquista o sonho de imprimir em papel de primeira sua impagável revista Banhero Selvagem — Quadriños de cair o queixo.
Na Erotika Fair, as mulheres são maioria, sozinhas ou acompanhadas, nos dois lados do balcão e em todas as frentes.
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Nota do editor: este texto foi originalmente publicado no site EPIMENTA, em 30/03/2014.
Edward Pimenta é jornalista e trabalha na Editora Abril. Autor de O homem que não gostava de beijos (Record, 2006), escreve mimosidades em EPIMENTA.
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