Por que culpamos a infância por nossos problemas?

por Frederico Mattos

Desde que Freud, criador da Psicanálise, atribuiu à infância a causa de todos os problemas da vida adulta, lentamente nossa cultura passou a adotar uma perspectiva causalista para resolver os próprios problemas.

É verdade que muitas coisas começaram na infância e criaram marcas que, com o tempo, se sedimentaram no nosso comportamento. Por exemplo, a seriedade excessiva do pai influencia na maneira austera de olhar para as próprias falhas e a super-proteção da mãe parece ter ter estimulado uma tendência a se sentir frágil diante das pressões da vida.

Mas até que ponto essa tendência remissiva a buscar eventos originais realmente solucionam um problema, quando identificadas?

Nunca deixo de lembrar que Freud, por ser médico, tinha uma tendência a identificar o agente infeccioso para debelar a doença e seus sintomas. Provavelmente, por não haver um modelo diferente do mecanicista, foi mais plausível transferir o conhecimento de uma área consagrada para outra iniciante, como a psicologia.

Quando essa perspectiva científica se dissemina na nossa cultura, o resultado é que ela passa a ser mal utilizada e interpretada como meio de reforçar uma visão que superestima o indivíduo como causador de seus problemas, ignorando que existe uma complexidade de fatores biológicos, culturais, sociais, além dos psicológicos.

Até mesmo na esfera dos fatores psicológicos existe muita atribuição enganosa de uma pessoa ao alegar para si mesma “sou culpada disso, e tudo isso se deve porque meu pai/mãe fez xyz”.

Existe um pouco de engano e prepotência nessa visão.

O engano é por ignorar a complexidade da vida, simplificando o motivo de uma ação atual por causa de uma cadeia de acontecimentos anteriores. E, em especial, o equívoco de imaginar que em nenhum momento o agente da ação atual teve escolha, pois foi movido por aspectos inconscientes a ele mesmo. É como se o passado fosse o mandante irrecusável de toda e qualquer ação, escondido na nossa mente, sem que possamos acessá-lo diretamente. Mas até que ponto não temos domínio sobre nosso comportamento?

Se fôssemos bem detalhados e descritivos ao analisar uma ação, já teríamos bons indicativos para flagrar o padrão supostamente inconsciente. No processo de terapia, o profissional em questão só está um pouco mais isento de intenções e de automanipulações, de forma que consegue perceber algo que todos vêem, menos o sujeito da ação. Mas, em essência, ele não tem uma varinha de condão, portanto, precisa da colaboração do agente para desvendar em conjunto o mecanismo de uma ação, muito mais do que sua causa.

Descobrir que o pai bateu ou a mãe fugiu só ajudará a pessoa a encontrar um suposto culpado, mas mesmo assim, o pepino segue na mão dele, pedindo por uma mudança de rota.

A única pessoa capaz de fazer isso é o sujeito que se queixa.

Ao chegar num suposto novo insight de “sim, eu sou o culpado pelo meu comportamento ruim”, ele também não está conseguindo mudar, mas só aumentar a autoacusação. Agora ele não culpa seu passado, sua infância ou seus pais, mas a si mesmo.

Essa prepotência remonta ainda uma falsa crença que ao dar algumas chibatadas na própria consciência ela irá ser domesticada e agir bem no futuro. Ou de que pode ter pleno controle de tudo o que lhe ocorre internamente a ponto de prevenir qualquer engano, erro ou confusão pessoal. Não irá.

É uma busca de infalibilidade e perfeição a qual nunca atingiremos.

O insight verdadeiro é saber-se passivo diante de forças que estão além do nosso controle e, ainda assim, olhar minuciosamente para as esferas onde podemos escolher mudanças de rota dos nossos padrões de comportamento.

Ao invés de dizer para si mesmo “seu burro, olha o que você fez” e ficar numa condição de espancamento pessoal estéril, seria mais interessante deduzir “parece que não captei completamente esse conhecimento e tenho a liberdade para aprender daqui para a frente”. Diante da burrice instituída não há nada o que fazer, mas diante do ponto cego pode haver um caminho.

Mesmo que eu tivesse problemas de memória e nunca fosse capaz de rememorar minha infância, não estaria aprisionado ao meu condicionamento, pois ele está aqui e agora disponível para investigação e pronto para ser recondicionado.

Saber do passado remoto virou um grande fetiche para pessoas que gostam de se sentir vítimas da vida, como se ao descobrir as causas estivessem livres do hábito.

Descobrir as causas é mais fácil do que mudar. Encontrar um culpado é mais fácil do que assumir a responsabilidade pela mudança.


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