Os olhos de Marina Silva falaram muito na semana passada. Sombrios, avermelhados, estavam ora cabisbaixos, ora elevados ao céu em conversa particular com seus santos. Nenhuma maquiagem. Acima dos olhos, as sobrancelhas espessas, sem depilação. Abaixo dos olhos, as olheiras escuras, sem disfarce.
O coque, a echarpe preta, a austeridade, sem choro ou afobações. Maria Osmarina Marina Silva Vaz de Lima, nascida no Acre em fevereiro de 1958, filha de seringueiros migrantes cearenses, contaminada por mercúrio aos 6 anos, analfabeta até os 16, aluna do Mobral, ex-empregada doméstica, formada em história, sobrevivente de malárias, hepatites e uma leishmaniose, continua a mesma. É evangélica, sempre se despede com um “vá com Deus”, mas não busca abertamente o voto dos crentes. Essa coerência assusta a quase todos. Não é normal no Brasil.
Marina é a viúva política de Eduardo Campos, queiram ou não. Talvez nunca um candidato tenha citado tanto seu vice. Ela passou dez meses ao lado de Campos, calada em público mesmo quando divergia. Era curioso o contraste físico e de personalidades. Campos esfuziante, forte, com o sorriso aberto e o brilho dos olhos azuis. Marina morena, magra, séria, sóbria e discreta. Agora, terá de falar – e muito. O que manteve Marina silenciosa nos dias após a tragédia foi um misto de luto, elegância e prudência.
Há raposas em todos os partidos – no PT, no PSDB e também no PSB – em busca dos destroços e holofotes. Querem decifrar a caixa-preta dos eleitores órfãos e herdar os votos da terceira via. A família de Campos, em meio a lágrimas e ao sofrimento, foi a primeira a legitimar Marina como herdeira natural do slogan da “coragem” para mudar o país. “Não vamos desistir do Brasil”, disse Campos. A ex-senadora Marina é a herdeira do “voto-comoção”.
Todos os obituários de Campos a fortalecem, porque compartilhavam valores e a dissidência do petismo.
“Se tenho um exemplo a dar com minha trajetória, é o da coragem, que não é a da força bruta, mas de saber manejar sonhos e catalisar energia”, disse Marina. A declaração poderia ter sido feita na semana passada. Foi há mais de dez anos, quando era ministra do Meio Ambiente de Lula.
Essa falta de medo está tatuada na pele de Marina. Em 1988, quando assumiu a CUT e a política do Acre depois de Chico Mendes ser assassinado, afirmou que não sofria ameaças: “Um corpo frágil não assusta ninguém”.
Quando José Dirceu, já ex-ministro, escreveu que o mandato de Marina pertencia ao PT, ela reagiu dizendo que já havia enfrentado madeireiros, fazendeiros, cangaceiros: “Com certeza, o Zé não fez isso para me intimidar; não faz parte do caráter dele”.
Há cinco anos, em agosto de 2009, depois de engolir muito sapo, Marina trocou o PT pelo PV para se candidatar à Presidência. Era pelo verde, pelo social e por muito mais que saía de perto de Lula e da mãe do PAC, Dilma Rousseff. Colheu quase 20 milhões de votos, deixou o PV após a eleição de 2010 e tentou, no ano passado, abrir um novo partido, Rede Sustentabilidade. Nome péssimo para o marketing político – mas, de novo, coerente. Não é uma sigla vazia.
Sem o limite mínimo de assinaturas válidas, Marina ignorou os companheiros xiitas e pendurou sua Rede no PSB de Eduardo Campos em outubro de 2013. Foi uma jogada de xadrez do tipo “vocês terão de me engolir”. Ela não podia imaginar o que o tabuleiro político lhe reservava ainda nesta eleição. Na fumaça da tragédia, em suas orações diárias, a Marina fundamentalista precisa pedir três coisas: sabedoria, sabedoria, sabedoria.
Uma vez, Marina escreveu um artigo para a imprensa chamado “O improvável e o imprevisível”. Um título quase premonitório. Foi seis anos atrás, ela ainda estava no PT. Citava várias vezes a filósofa alemã Hannah Arendt para criticar a arrogância dos partidos, que se consideram donos da energia política da sociedade. Eis um trecho, editado:
“O sentido da política é a liberdade. Os cidadãos e cidadãs estão criando uma política livre, viva, na academia, nos movimentos culturais, no consumo consciente, na internet, nas empresas, nas ONGs, nas igrejas. O grande desafio da democracia é criar espaços múltiplos de participação política, nos quais os partidos sejam parceiros e não guias. Os homens, enquanto puderem agir, são aptos a realizar o improvável e o imprevisível. É o que a sociedade brasileira está fazendo. E os partidos ainda não se tocaram”.
Marina escreveu isso em 2008. Seu pescoço projeta veias caudalosas. Sua voz é arranhada. Rugas estão intactas. Não parece se curvar facilmente a nenhum “media training”. Por que será mesmo que tem tanta gente com medo dela?
by Ruth Aquino - Época