Coluna dominical de Paulo Coelho

Diálogos entre o Céu e o inferno
Reflexões sobre Jó

Há quatro semanas atrás, publiquei aqui o texto "Lenin desce aos infernos", onde procurava fazer uma análise bem-humorada dos diálogos entre o demônio e os céus. Por mais incrível que pareça, estes diálogos aparecem muitas vezes na Bíblia. "O Livro de Jó", por exemplo, começa com uma surpreendente visita de Satanás a Deus. Mais surpreendente ainda, é que Satanás o instiga a castigar o seu servo mais fiel. Para surpresa total, Deus faz isso.

"O Livro de Jó" é uma verdadeira obra prima. Depois de ter sido privado de todos os seus bens materiais e afetivos, Jó revolta-se e começa a clamar contra a injustiça que está sofrendo. Na verdade, o pobre homem sempre procurou fazer o melhor possível, e agora vê-se diante daquele Poder imenso, que o está punindo justamente por isso. Todos nós, em algum momento de nossas vidas, já nos vimos diante da mesma situação, mas ao invés de reclamar contra Deus - que, na minha interpretação, espera que ajamos assim - terminamos voltando nossas baterias contra nós mesmos. Achamos que não merecemos, que não somos dignos, etc. Enfim, nosso complexo de culpa é sempre maior que nossa capacidade de reagir.

Em toda família normal, é importante que os filhos encontrem sua voz através de uma rebelião saudável. Em nossa relação espiritual, é bom saber que às vezes temos o direito de reclamar na hora certa - e seremos ouvidos.

Ainda bem que Jó nos dá um bom exemplo.

Um santo no lugar errado

E para completar minhas reflexões sobre este constante diálogo entre a dor e a felicidade, o Inferno e o Paraíso, reescrevo uma história, atribuída a autor desconhecido, que me foi enviada logo após a publicação de "Lenin desce aos infernos".

Certa vez, perguntei para o Ramesh, um de meus mestres na Índia:

- Por que existem pessoas que saem facilmente dos problemas mais complicados, enquanto outras sofrem por problemas muito pequenos, morrem afogadas num copo de água?

Ele simplesmente sorriu e me contou uma história.

"Era um sujeito que viveu amorosamente toda a sua vida. Quando morreu, todo mundo lhe falou para ir ao céu, um homem tão bondoso quanto ele somente poderia ir para o Paraíso. Ir para o céu não era tão importante para aquele homem, mas mesmo assim ele foi até lá.

Naquela época, o céu não havia ainda passado por um programa de qualidade total. A recepção não funcionava muito bem, a moça que o recebeu deu uma olhada rápida nas fichas em cima do balcão e, como não viu o nome dele na lista, lhe orientou para ir ao Inferno.

E, no Inferno, ninguém exige crachá nem convite, qualquer um que chega é convidado a entrar. O sujeito entrou e foi ficando...

Alguns dias depois, Lúcifer chega furioso às portas do Paraíso para tomar satisfações com São Pedro:

- Isso que você está fazendo é puro terrorismo!!

Sem saber o motivo de tanta raiva, Pedro pergunta do que se trata. Um transtornado Lúcifer responde:

- Você mandou aquele sujeito para o Inferno e ele está me desmoralizando! Chegou escutando as pessoas, olhando-as nos olhos, conversando com elas. Agora, está todo mundo dialogando, se abraçando, se beijando. O inferno não é lugar para isso! Por favor, traga este sujeito para cá!".

Quando Ramesh terminou de contar esta história olhou-me carinhosamente e disse:

- Viva com tanto amor no coração que se, por engano, você for parar no Inferno, o próprio demônio lhe trará de volta ao Paraíso.


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