Zegomes - alguns palpites sobre a breguice


O Ê-breguismo, o Ê-fascismo

Porque muitos brasileiros passaram a chamar a letra É de Ê? Alguns palpites sobre a breguice.  

O que é ser brega? Uma das características mais marcantes do brega é querer agir como se ele fosse outro. Outro que ele talvez admire sinceramente ou que é induzido a admirar (pela mídia, pelo grupo no qual está inserido naquele momento da sua vida, etc.).

Não é por acaso que um dos exemplos mais típicos de breguice, um dos que mais chama a atenção e provoca o riso, é a modificação do jeito de falar. Um brasileiro que passa algum tempo morando no exterior e volta falando diferente, com sotaque. A pessoa que está estudando uma língua estrangeira e passa a utilizar palavras e expressões dessa língua na sua conversa diária, trivial, com os interlocutores. A pessoa que passa a falar "difícil" propositadamente perante o seu grupo.

Quando o brega age como brega ele quer impressionar os outros, seduzir (e assim assumir um certo status de superioridade sobre os outros). Ele acha que é chique imitando alguém que ele acha que é chique ou que foi induzido a achar. E quer que os outros o achem chique quando faz essa imitação. É... A breguice é um modo de sedução. Que funciona entre outros bregas, mas é letal num meio mais cultivado, onde só provocará o deboche.

Isso estou dizendo eu, um simples leigo no assunto. Os estudiosos do brega podem talvez dizer mais sobre a breguice.

Parece que já li em algum lugar, não sei onde, que uma diferença entre ser caipira e ser brega é que o primeiro é autêntico e o segundo não. Quem sabe não se pode acrescentar que o caipira não tem pretensão de ser considerado chique e o brega sim. E com essa "chiqueza" quer ter alguma preponderância sobre os outros. Quer ser mais considerado, em suma, quer ter poder.

De uns tempos para cá, mais precisamente desde fins da década de noventa, ou pelo menos foi a partir daí que passei a notar com mais atenção o fenômeno, a "elite" brasileira, puxada pela Rede Globo, passou a achar extremamente chique pronunciar a letra "é" com o som fechado "ê". Imitando os brasileiros sulistas de origem italiana, alemã e espanhola.

Quase todo brasileiro aprendeu a pronunciar as vogais do velho ABC assim: A, É, I, Ó, U. 

Hoje em dia, especialmente na Rede Globo e nas vozes da propaganda, e especialmente em São Paulo, se você não chamar o "é" de "ê" e até mesmo o "ó" de "ô" faz feio, não é chique.

E, não contentes com a mudança da letra isolada, para serem coerentes, mudaram também a pronúncia do "é" nas palavras. Essas pessoas não querem mais dizer "éducação"  e  sim "êducação". República, com "é" bem aberto que vem das palavras latinas res publica, com o "e" de res bem aberto, só deve ser pronunciada "rêpública", para ser chique. Mesmo que para isso o fôlego necessário para fazer a aspiração fechada seja maior, deixando a conversação mais cansativa. O importante é ser "chique".

As sucessivas reformas ortográficas da língua portuguesa vêm facilitando essas "chiquezas". Houve tempo em que "e" aberto tinha quase sempre o acento agudo " ´ " para diferenciar do "e" fechado que tinha o acento circunflexo " ^ ".  Mas as reformas ortográficas foram abolindo esse chamado acento diferencial. A reforma de 1971 (Lei 5765/71 do General Médici) é a principal responsável pela extinção do acento. Recentemente tivemos nova reforma que reduziu mais ainda o uso de acentos diferenciais. O objetivo alegado sempre foi o de simplificar a escrita, nunca o de mudar a pronúncia das palavras.

Entretanto o que vemos hoje é uma avalanche de ê-falantes no português do Brasil. Tem-se a impressão de que cada repórter e cada locutor de propagandas na TV e no rádio vão diariamente para a frente do espelho treinar falar "ês" fechados para não cometerem gafes. E que temos fonoaudiólogas da Globo em todos os estúdios treinando os repórteres a falar "chique" com "ê" fechado.

Assim a regra é ouvirmos:

Êlêtrônicos (embora ainda não ousem chamar elétrons de êlêtrons).

Êspêcial (embora não possam chamar espécie de êspêcie).

Êlêtricidade, êlêtricista, êlêtrizante, (embora não ousem pronunciar êlêtrico em vez de elétrico).

Cêlular (embora ainda pronunciem normalmente célula).

Nôrmal (embora ainda pronunciem norma com "ó" aberto).

Sêxual (embora não tentem mudar a pronúncia de sexo, de "é" para "ê" por ficar ridículo).

Acabo de ouvir um repórter da CBN tascar um "aprêssar", chiquérrimo, pena que não se pode falar prêssa, por ficar estranho. Outra, na TV Globo, acaba de soltar um "mistêrioso", que aparentemente se origina de "mistério". Antigamente, na época do Cid Moreira e Sérgio Chapelin, o Jornal Nacional era anunciado assim: jórnal nacional. Agora os locutores dizem: jôrnal nacional, jôrnal hoje, enfatizando bem o "ô". Gente fina fala assim.

Na Copa das Confederações de 2013 um jovem repórter fez uma matéria em um sítio de quilombolas para o Esporte Espetacular. Ele perguntava aos negros: você já ouviu falar de Pêlé? Fiz uma retrospectiva mental tentando lembrar se em algum lugar do Brasil ou do exterior, nas TVs e nos rádios eu já ouvira alguém pronunciar o famosíssimo nome de Pelé com o primeiro "é" fechado. Nunca. Sempre o que se escuta é Pélé.

Deve ser a força do hábito de transformar tudo em "ês" mais chiques, para diferenciar desses falantes de Minas Gerais para cima, especialmente dos feios nordestinos, que em tudo são feios e pobres, até no falar –não importa se os nordestinos são mais fiéis ao português de Portugal ou ao ancestral latino.

Na língua portuguesa –na verdade em todas as línguas românicas- há o fenômeno histórico chamado metafonia. Na formação de plurais (ôlho > ólhos; côrpo > córpos; ôvo > óvos; pôrto > pórtos, etc.). Em conjugações verbais (dêver: eu dêvo, tu déves, ele déve, nós dévemos, vós dêveis, eles dévem), etc.  Em alemão há o fenômeno do Umlaut que é similar ao da metafonia. Alguns plurais se formam acrescentando um ä  que corresponde ao som da letra "é", aberta.[1]

Parece que os bregas brasileiros estão conseguindo fazer uma metafonia ao contrário: agora tudo que é aberto vai se tornar fechado.     

Ouvindo-se os cantores sertanejos chama a atenção sua domesticação para pronunciarem tudo com som fechado. Como os mais importantes cantores desse gênero são de Goiás e Minas, lugares é-falantes, fica-se imaginando que tão logo cheguem nos estúdios de gravação de São Paulo são levados para laboratórios com fonoaudiólogas da Globo, onde são ensinados a falar "chique". Aí o Brasil todo é obrigado a ouvir os cantores expressarem em alto e bom som as "êmôções"  de seu "côração". Para ser justo, esse fenômeno com os cantores remonta mais para trás nos anos. Vicente Celestino era pura impostação na voz. Roberto Carlos já canta tudo fechado, para ele já era chique.

Segundo os estudiosos, o latim não conhece o som do "ê" fechado. É uma língua puramente é-falante.

No grego antigo aparentemente há a presença dos dois sons. Convencionou-se nas gramáticas considerar que o épsilon representa o "é" aberto e o êta o "ê" fechado, assim como o ômicron representa o "o" aberto e o ômega o "ô" fechado. Há controvérsias. Muitos filólogos acham que a oposição que há entre esses pares é apenas de duração do som, longo ou breve. O simpático velhinho professor de grego da USP, Prof. Henrique Murachco, no seu livro Língua Grega, 1ª Ed, Ed. Vozes e Discurso Editorial, 2001, afirma que não existe vogal fechada em grego (pág. 37). Mas é contraditório o que diz, pois ao dar exemplos em português, do som da letra épsilon, ele cita "mesa" e "medo" palavras com ê-fechado. Ao citar exemplos em português do som da letra êta ele menciona "atleta"  e "tese" palavras com é-aberto. Se não existe vogal fechada em grego como a pronúncia de épsilon corresponderia ao "e" de mesa que é fechado? E por que ele, ao dar esses exemplos, ainda inverte a convenção que prevalece entre os outros filólogos e gramáticos, onde o épsilon é considerado aberto e o êta fechado?

A língua alemã é uma língua predominantemente ê-falante. A letra "e" se pronuncia "ê" fechado e nas palavras ela representa predominantemente esse som. Para representar o "é" aberto é mais comum o "ä", ou seja, a letra "a" com uma treminha em cima. No falar cotidiano a língua alemã não é assim tão ê-falante. Um sufixo muito comum nessa língua, o "berg" , é pronunciado bem aberto, "bérg". Em 2012 fui a Berlim. Lá existe uma rua chamada Kant –o filósofo- e na Rua Kant tem uma esquina pontuda onde há um centro comercial conhecido. Esquina ou canto em alemão se chama Ecke. Eles chamam popularmente essa esquina pontuda da Rua Kant de Kantecke. Desejando ir até lá eu perguntei a uma senhora: para onde fica a Kantecke? E, claro, como eu estava num país onde a letra "é" é chamada de "ê", eu pronunciei Êcke, com os "ês fechados". A mulher pensou um pouco, pediu para eu repetir, e após algum tempo finalmente disse: ah, sim, Ééééécke! Era aberta a pronúncia do "e". Quem diria. Nossos chiques não iriam gostar. Isso é mais uma prova que mesmo nas línguas onde o nome da letra é Ê, nas palavras, mesmo com a letra isolada, como no caso de Ecke, ela pode ser pronunciada aberta. Portanto nossos chiques estão realmente exagerando ao falarem todos os és de nossa língua com som fechado.    

A língua francesa apresenta a grafia "é" com acento agudo para o som de "ê" fechado e "è" com acento grave e o ditongo "ai" para o som do "é" aberto, e parece que ambos os sons têm uso amplo na língua.

 A língua italiana apresenta os dois sons, mas tem uma predominância do "ê" fechado, portanto uma língua predominantemente ê-falante. Como isso se deu, se é a filha número um do latim, uma língua exclusivamente é-falante? Se alguém souber, favor explicar. A fronteira norte da Itália se estende com países de fala alemã. O Tirol italiano fala alemão. A região norte da Itália é mais desenvolvida, mais "chique". Será se não houve lá um processo semelhante ao que estão querendo fazer por aqui, ou seja, a imposição de um jeito de falar considerado mais chique, vindo de uma região mais rica, e absorvendo paulatinamente os mais pobres e mais periféricos?  Lembro que nas chamadas da novela Esperança, da Rede Globo, o locutor falava "Êspêrança" e um dos temas musicais da novela era uma canção italiana cantada por uma cantora italiana que repetia várias vezes a palavra speranza ou esperanza com os sons de "é" aberto. Via-se nitidamente que a pronúncia italiana era mais normal, mais latina do que a pronúncia das fonoaudiólogas da Globo.

A língua espanhola soletra a letra "e" fechado, "ê". E é uma língua também  predominantemente ê-falante. Por ser uma língua latina e o latim ser é-falante, como o espanhol (castelhano) se tornou ê-falante? Dizem os estudiosos que as vogais castelhanas são herança da língua basca, também chamada de vasconço, que é uma língua ê-falante e que influenciou o "ibero", língua majoritária da região da Espanha, antes da chegada do latim com os romanos. A língua árabe que conviveu na península ibérica por séculos não deve ter influenciado o espanhol neste aspecto, porque, dizem os entendidos, na língua árabe só existem três vogais:  a, i, u. Não existe o som de "e", seja fechado ou aberto. Muito curioso. Deve ser por isso que ao escutarmos um árabe falar, parece que só escutamos sequências de sílabas com "a".

A língua inglesa, o xodó de nossos "chiques", não os ajuda muito. É verdade que a letra "a" se pronuncia "êi" e por isso há na língua muitos sons aparentados de "ê". E o artigo The, com ê fechado contribui para os fãs do som fechado. Infelizmente, para nossos chiques, a pronúncia da letra "a" e letra "e" antes de duas consoantes vira o tão odiado "é", aberto, e assim nossos chiques são obrigados muitas vezes a pronunciar em inglês esse som que eles tanto desprezam na língua pátria. Como ao pronunciarem apple (épôl) ou fashion (féshion).

A língua portuguesa tem os sons "ê" e "é" . A letra isolada é tradicionalmente chamada de "é". Nas palavras alternamos esses sons espontaneamente segundo o uso comum da língua. Quando eu falo, e observo isso também entre meus amigos (sejam eles do Nordeste, de Goiás ou de Minas Gerais) , uma palavra como "educação" sai com "é" aberto. Já "eleição" sai naturalmente com os dois "és" fechados "êlêição". Dezesseis sai com os três "és" fechados e dezessete com os três abertos. Dezoito fechado e Dezenove aberto. Isso se não sair um bem natural "di", dizessete, dizoito, dizenove.  Essa alternância de acordo com o uso tradicional da língua deixa o falar mais fluente, com menos esforço, menos pedante. Querer fechar todas as ocorrências da letra "e" deixa o falar artificial, pedante, cansativo e brega.  Brega porque a pessoa que assim o faz quer ser "chique" imitando o falar das línguas predominantemente ê-falantes. É brega porque quer ser o que não é, repudiando sua própria identidade e sua cultura, porque se desvaloriza. Nem mesmo os falantes de espanhol, por exemplo, fecham o ê em todas as palavras. É só ouvir documentários em espanhol que se percebe facilmente isso.

O português de Portugal é mais radical que o brasileiro no uso de vogais abertas. Muitas palavras que fechamos, por exemplo, aquelas juntas de um som nasal, como no nome Antonio, que antes da reforma ortográfica escrevíamos Antônio, eles pronunciam e escrevem António e impuseram esse uso aberto –opcional- inclusive no último acordo ortográfico.

No Brasil parece que fazemos uso mais equilibrado dos dois sons. Sempre tivemos bolsões de ê-falantes, especialmente no estado de São Paulo e nos estados do Sul, em regiões de forte imigração italiana, alemã e de língua espanhola (fronteiras com países falantes do espanhol). Mas eles eram minoria e bem delimitados. O problema parece ter começado com as fonoaudiólogas da Globo.  O problema parece ter realmente se avultado quando a "elite" brasileira se descobriu como melhor que o resto da população, mais rica, mais bonita, mais européia. Essa elite despreza raízes portuguesas, aqueles baixinhos, atrasadinhos da Europa. Despreza os nordestinos com suas cabeças chatas[2] e sua pobreza. Despreza todos esses é-falantes. Na eleição de 2010 uma propaganda do Serra colocava uma voz nordestina falando, totalmente estereotipada, com todos os sons abertos, os "t" e os "d" sempre linguodentais, e essa voz ao falar PT dizia Pé-Tê. Ninguém no Brasil fala PT assim. Desconheço quem pronuncie no Brasil a letra "p" como "pé".  Mas achei isso uma prova sensacional da politização fascista dessa questão lingüística.

           

No Dicionário Aurélio, 1ª edição, sem data, Ed. Nova Fronteira, consta a entrada:

E  (é). S.m.  1. A quinta letra do alfabeto.

Não refere a variante (ê). Em edições recentes que folheei em uma livraria já consta a menção ao som "ê" em primeiro lugar e depois o som "é". Estaria o ê-breguismo triunfando também entre os dicionaristas?

No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, 1ª edição, Ed. Objetiva, 2009, consta essas duas entradas:

1) E \é ou ê\ s.m. 1.quinta letra do nosso alfabeto.   

2) É  s.m. nome da letra e.

No livro Grande Manual de Ortografia Globo, 3ª edição, 1981 do gramático gaúcho Celso Pedro Luft ele escreve: "O nome tradicional, clássico, das letras e  o  é  é  ó, timbre aberto; mas em algumas regiões (Rio Grande do Sul, p. ex.) existem as variantes  ê ô".

No livro Novo Guia Ortográfico, 2ª edição, 2003, editora Globo, do mesmo autor    ele dá o nome das letras com timbre aberto e não menciona as variantes regionais.

O gramático brasileiro mais mordaz com os ê-falantes é o Prof. Luiz Antonio Sacconi, gramático, dicionarista e professor da USP. No livro "Não erre mais" , 27ª edição, 2003, editora Saraiva/Atual, ele escreve assim:

"Como devo pronunciar a abreviatura de extraterrestre: ET?

Assim: é tê (e não "ê" tê, como fazem alguns terráqueos mal-informados). Todas as vogais, quando pronunciadas isoladamente, devem ter som aberto. Por isso, leia corretamente: vitamina E, TV E, IBGE, Tafman E, lâmpada GE, TER, DNER, DER, BNDES, RGE, Monza SLE, Mercedes-Benz série E, Toyota XE.

Se você não leu todas essas vogais em destaque com som aberto, ou seja, é, esteja certo: os extraterrestres estão chegando! E vão levá-lo, com certeza!"  

Folheando uma edição posterior desse mesmo livro do Prof. Sacconi numa livraria, percebi que ele mudou o comentário sobre esse erro. Dessa vez ele fuzila um programa de televisão em que as pessoas estavam falando "ê" e ninguém corrigia esse "erro grave".

Não deve ser o programa do Sílvio Santos, pois já vi muitas vezes com que impaciência e certo desdém ele corrige as pessoas "chiques" que falam "ê" naquela parte do seu programa em que as pessoas ganham dinheiro ao adivinhar qual a palavra, letra por letra, acho que se chamaroletrando ou soletrando.

Recentemente folheei a última edição do mesmo livro e o professor já tinha mudado o comentário, sempre debochando da pronúncia "ê". Pena que nessa mesma edição ele coloca, bem no início do livro, um artigo do Reinaldo Azevedo defenestrando o lingüista Marcos Bagno, aquele que defende o uso menos rígido das normas gramaticais. Colocar artigos do Reinaldo Azevedo como prefácio de um livro é, sem dúvida, no mínimo, prova de mau gosto do autor.   

Na profissão de oftalmologista tenho a oportunidade de ouvir diversas pessoas falarem as letras muitas vezes por dia. Trabalhei em São Paulo dez anos e então (1989-1999), mesmo naquela cidade, as pessoas não chamavam a letra É de Ê. Essa generalização é um fenômeno dos anos 2000. É o poder das fonoaudiólogas da Globo.

Costumo corrigir as pessoas no consultório quando falam Ê. Com jeito, para não ofender ninguém. Quando retrucam mostro o livro do Celso Luft, ou do Sacconi ou da Dad Squarizi ( consultora de língua portuguesa do jornal Correio Braziliense). Ultimamente até mesmo muitos nordestinos falam um Ê meio acanhado, sem jeito. Parecem ter medo de falar É e serem considerados analfabetos, serem inferiorizados. Preferem dizer Ê, porque assim falam as fonoaudiólogas da Globo e então deve ser chique e certo. Isso no Distrito Federal que deve ser metade nordestino, um terço goiano, um quinto mineiro, e o que sobrar, do restante do Brasil. Muitas vezes pergunto, inocentemente, por que a pessoa fala Ê. 

As respostas são mais ou menos assim:

Porque só é É quando tem acento. As pessoas não sabem da queda do acento diferencial.

Porque a professora ensina assim. Dessa forma fiquei sabendo que no DF existem professores que tiram ponto dos alunos se falarem É aberto. Grande influência das fonoaudiólogas da Globo.

De vez em quando alguém responde, meio zombeteiro, sorrindo, que fala Ê porque não é nordestino. Pronto. A elite brasileira que quer ser européia ou pelo menos porteña está vencendo. 

Na novela "Araguaia", da Rede Globo, as pessoas falavam "gauchez". É uma profusão de "Bueno", "tu vais", "ês" para todos os lados. De Goiás só tem as referências a Goiânia e Pirenópolis.  A empregada doméstica Aspásia, vivida por uma atriz originária de Rio Verde-Go, era uma das poucas que tinha um falar típico do interior goiano. Mesmo essa, no entanto, numa cena em que descobriu que o nome de seu futuro marido começaria com a letra E, despachou sequências e sequências de "Ês" Brasil afora. É um desrespeito com a diversidade, com as culturas regionais. Todo mundo sabe que o Mato Grosso foi invadido por gaúchos, mas isso não dá ensejo para o menosprezo total da cultura original da região.

Na novela mais recente, Meu Pedacinho de Chão, o ambiente de fundo é Brasil: um coronel, seus jagunços, seus trabalhadores rurais quase escravos, eleições com voto de cabresto, a empregada doméstica negra, a professorinha que veio de São Paulo. Mas o cenário é totalmente europeu: casinhas com telhados pontudos de escorrer neve, um pequeno castelo onde mora o coronel, flores para todos os lados nas estradas e nos balcões das janelas, pés de frutas vermelhas desconhecidas nossas (não se vê um pé de jaca, de manga, etc.). E uma profusão de falantes de "ês". Mesmo as atrizes mineiras do Grupo Galpão de Belo Horizonte que trabalham na novela e que falam um delicioso sotaque mineiro são obrigadas a, de vez em quando, soltar um "dê" para ficarem "chiques". Que pena essa viralatice.  Nessa novela pode-se até perdoar, pois é um pequenino conto de fadas onde tudo pode acontecer. Mas não deixa de ser um testemunho dos anseios secretos de uma parte da elite: ser europeu, ser o que não somos.     

Sem falar que o "gauchez" da Globo é um estereótipo assim como o "italianez" de suas novelas baseadas em São Paulo. Estive três vezes em Porto Alegre. Não percebi esse carrego no sotaque. Os jornalistas da Globo local falam mais "normal" que os de Brasília, São Paulo e Rio. Lá ouvi jornalistas falarem "educação", "reforma" com "é" como a maior parte dos brasileiros falavam até pouco tempo atrás.

Reportagem no programa da Globo "Pequenas Empresas Grandes Negócios" exibido no dia 09/11/2014: "Fábrica de instrumentos musicais de Itupeva-SP usa madeira certificada pelo Ibama". O repórter capricha em dizer que a madeira para o violão é cÔrtada –talvez ele queira dizer que ela veio da corte de Portugal e não que sofreu um corte-, cÔlada –tadinha da cola virou cÔla-   Tudo em nome da chiqueza. E não se enganem, talvez inconscientemente, uma maneira de dizer: nós, sulistas, falamos assim. Nós somos diferentes, somos internacionais, etc. e outras qualidades superiores. Duvidam? O pobre repórter pode nem estar percebendo o detalhe. O fascismo gosta de coisas excludentes, exclusivas. O fascismo está dentro de nós. Às vezes, mesmo sem querermos, inconscientemente.

Será se a antipatia que sentimos diante do ê-breguismo é bizarrice de velho, visto que já somos cinqüentões? É repúdio ao novo?

Os lingüistas gostam de enfatizar que a língua é dinâmica, as mutações são freqüentes e devemos aceitá-las democraticamente.

O problema é que aqui a mutação parece ser antidemocrática, que tende a humilhar o outro, a depreciar. A mutação aqui parece ser fascista. 

Getúlio Vargas tinha razão ao limitar o uso do alemão em algumas comunidades do sul? Será se ele temia justamente isso, o uso da língua como fator de humilhação do outro?

A elite brasileira do sudeste/sul critica muito o gerundismo, aquela mania dos operadores de telemarketing de falarem no gerúndio, "nós vamos estar providenciando, etc.". Ninguém, a não ser o Prof. Sacconi, critica o ê-breguismo. Não será porque o gerundismo é praticado pelos pobres, aqueles que passam pelo menos seis horas por dia batalhando a vida com um telefone no ouvido, e o ê-breguismo é coisa de quem quer ser "chique", ser europeu?

Brega quer imitar um chique e parecer chique diante dos outros e assim seduzir e angariar poder. Fascista acha ele próprio e o seu grupo o melhor, o único, e espezinha os outros. A elite brasileira quer falar chique, quer imitar o mundo rico, quer fugir de parecer português ou nordestino. Quer o seu grupo mandando, inclusive alterando o uso centenário da língua. O fascismo não aceita a diversidade. 

Isso não parece ser uma simples mutação fonética, espontânea, uma evolução da língua dinâmica. Marcos Bagno que me perdoe, aqui não é um preconceito linguístico invertido, contra as elites. Nessa mutação linguística das elites tem rancor, tem querer diminuir o outro, tem querer negar a lusitanidade, tem querer menosprezar nordestino. E por isso é criticável. Tem querer inferiorizar os mais pobres e os mais ferrados.  Tem fascismo nesse angu.    

E sendo assim, salvar o "é" parece que se torna uma questão de resistência e luta contra o fascismo.

P.S.  Pasquale Cipro Neto escreveu recentemente que os paulistas chamarem Roraima de Rorãima também está certo. Será mesmo, professor? Não será arrogância? Nomes próprios, ainda mais de um estado da federação ter sua pronúncia modificada apenas porque São Paulo decidiu assim? Que os sulistas se acharem "chiquesésimos" porque pronunciam "Bá-na-na" enquanto o resto do país fala "Bã-na-na", pode-se até aceitar. É uma regra natural da língua nasalizar a vogal anterior a "n" e "m", como em "Ã-na",  "Cã-ma", etc. Mas se os sulistas resolveram retirar a nasalidade de banana, tudo bem. Agora, colocar som nasal em um nome próprio que é pronunciado aberto, reinventando as regras da gramática, não seria um pouquinho demais?     

[1] Para quem quiser saber mais sobre metafonia, neste link um professor de português da Universidade de Kiel, na Alemanha, explica como é difícil fazer os estudantes alemães entenderem a metafonia do português porque, com a queda dos acentos, ela se tornou um fenômeno apenas oral e não gráfico: O ensino / aprendizagem da metafonia do português como língua estrangeira por aprendizes alemães | Krug | Contingentia

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