O indefectível Maquiavel advertia que muitas vezes um governante, pensando em estar fazendo o bem está fazendo o mal. Em outras vezes, é preciso fazer o que o senso comum considera que é o “mal” para fazer o bem. Ou seja, a piedade pode ser cruel e a crueldade pode ser piedosa. Em se tratado dos problemas fiscais dos Estados, invariavelmente, as visões esquerdistas não conseguem compreender esse paradoxo e propendem a defender ou fazer o mal ao invés de manter a saúde fiscal do poder público – condição necessária para o exercício do bom governo, entendido como governo que prioriza o interesse público comum.
É certo que nem só a esquerda (ou aquilo que é considerado como tal) é responsável pela irresponsabilidade fiscal. A crise europeia recente mostra que partidos socialdemocratas e liberais-conservadores também são useiros em promover desequilíbrios e depois tentar corrigi-los com violentas políticas de austeridade jogadas nos ombros dos trabalhadores e do funcionalismo público. A irresponsabilidade fiscal faz com que determinados Estados e sociedade vivam acima de suas condições durante determinado período. Mas no final da festa, alguém sempre tem que pagar a conta. Os mais ricos mostram-se os mais avaros nesse momento.
No primeiro mandato do governo Dilma foram feitas algumas “bondades” que agora vêm se revelando cruéis: desonerações fiscais, incentivos e vultosas concessões de empréstimos a juros subsidiados com dinheiro público via BNDES. Essa “brincadeira” toda custou caro, como disse Joaquim Levy. O resultado fiscal de 2014 foi R$ 100 bilhões inferior ao prometido. Outras torneiras. desnecessária e ineficientemente abertas do gasto público. também contribuíram para o agravamento da situação fiscal do país. As desonerações e os incentivos não resultaram em mais investimentos por parte dos setores beneficiados e, consequentemente, não geraram novos empregos. As “bondades” do BNDE$S alavancaram os Eike Batistas da vida ou a Friboi, que doou o equivalente a 10% dos empréstimos a juros subsidiados para campanhas eleitorais. Desonerações e subsídios geralmente são feitos sem critérios e resultam em injustiça, pois determinados setores são beneficiados sem que outros o sejam. Setores que, normalmente, são amigos do rei.
O Perigo da Esquizofrenia
A crise fiscal do setor público, como se sabe, produz graves consequências: aumento da dívida pública, elevação dos juros e dos gastos com os mesmos, encurtamento dos prazos dos empréstimos para contrair nova dívida pública, aumento da inflação, desconfiança dos investidores, riscos para o emprego e crise sistêmica de confiança. A última consequência do não enfrentamento de uma crise fiscal é o colapso da economia e uma possível moratória. Outra saída são os famosos programas de ajuda das agências internacionais em troca de pesados programas de austeridade, como ocorre na Grécia.
A vitória do Syriza na Grécia, sem dúvida, foi um fato alentador para todos aqueles que se colocam em linha por sociedades mais justas, menos desequilibradas e que combatem o domínio do capital financeiro. Mas sempre se há que ter o senso de realidade. O esquerdismo esquizofrênico saudou a vitória do Syriza como o caminho encontrado que conduziria a Canaã. Alguns próceres do esquerdismo usaram aquela vitória para emitir advertências contra Joaquim Levy e o ajuste fiscal, antevendo-os tragados pelo Mar Vermelho. Agora, diante do acordo que o governo de Alexis Tsipras fez com o Eurogrupo, esses mesmos próceres são obrigados a fazer inúmeros contorcionismos para justificar suas posições.
O esquerdismo, incluindo setores do PT, vem se posicionando contra as medidas de ajuste fiscal. Até mesmo setores sindicais e econômicos que se beneficiaram das “bondades” cruéis bradam contra o saneamento das contas públicas e clamam por mais benefícios e gastos. Em suma: apostam no agravamento da crise, circunstância que levaria ao caminho da Grécia e de outros países europeus que perderam o controle sobre o endividamento público.
Em que pese os erros do primeiro mandato do governo Dilma, a crise fiscal está longe de ser próxima da dos países do sul da Europa. Não há um descontrole e nem uma eminência de colapso. O ajuste visa apenas o restabelecimento da prudência e da responsabilidade, evitando que a crise se agrave. É verdade que o ajuste pode implicar em sacrifícios e na estagnação econômica em 2015. Mas se o que precisa ser feito for feito com serenidade, comando e eficiência, o Brasil poderá voltar a crescer nos anos seguintes. A “crueldade” de 2015 poderá revelar-se piedosa a partir de 2016.
A crise brasileira tem uma natureza muito mais política e moral, do que econômica e fiscal. O sistema político e os governantes carecem de legitimidade. Existe uma incapacidade generalizada para enfrentar os problemas existentes. A corrupção corroeu a confiança e a crença na política e nos políticos. O governo e o PT estão paralisados e sem capacidade de reação no interior dessa armadilha. O PMDB, com o seu ativismo e voracidade, não é capaz de constituir-se como um condutor sereno, sério e responsável. A oposição sofre dos mesmos males do governismo.
A única tábua de salvação que o governo tem é a recuperação da economia. Para que a economia se recupere é preciso restabelecer a confiança. O ajuste fiscal pode ser um meio para ajudar a restabelecê-la. Mas só isto não basta. Para atravessar os mares revoltos de 2015 é preciso um comando político firme, que saiba lidar com controles, com capacidade de convencimento e persuasão e com operacionalidade. Este comando existe? Eis a questão.
Aldo Fornazieri – Cientista Político e Professor da Escola de Sociologia e Política.
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