É muito provável que os manifestantes indignados com a corrupção que envolveu alguns membros do Partido dos Trabalhadores não saibam que as mazelas do partido constrangem e entristecem ainda mais profundamente os seus antigos filiados ou simpatizantes que o viram nascer e crescer em um contexto de luta democrática e esperança política.
Eis um ponto para reflexão: o PT tem uma história, o que está longe de ocorrer com a maioria das agremiações partidárias que hoje fragmentam o cenário político brasileiro. É uma história que honra os seus fundadores e desonra os que traíram os seus valores. Sem nunca ter-me filiado, tive o privilégio de ver esse acontecimento extraordinário na política brasileira que foi o entusiasmo puro de homens e mulheres pertencentes às comunidades de base da periferia (Osasco, Santo André, São Bernardo, São Caetano...) reunindo-se em casas de família, salões paroquiais, centros de Direitos Humanos, sedes de sindicatos independentes, salas de aula na universidade e em seminários católicos e protestantes, classes de educação de adultos, salinhas de grêmios de colégios, barzinhos de subúrbio... E reunidos em nome de um ideal que parecia ter soçobrado em 20 anos de ditadura: o ideal de uma democracia política em busca de uma democracia econômica.
O novo partido, que saía formalmente de um encontro no Colégio Sion, em 10 de fevereiro de 1980, era antes uma aspiração difusa, porém intensa, do que uma organização hierarquizada. Participar e debater eram verbos mais importantes do que poder e mandar. Veja a lista dos fundadores: intelectuais ilustres como Mário Pedrosa, Sérgio Buarque de Holanda, Antonio Candido, Paul Singer e Jacob Gorender ao lado de sindicalistas, Lula e Henos Amorina, Paulo Skromov e Jacó Bittar, líderes camponeses como Manuel da Conceição ao lado de artistas da envergadura de Lélia Abramo, o maior dos educadores brasileiros, Paulo Freire (representado por Moacir Gadotti) e uma das mais belas figuras do jornalismo brasileiro, Perseu Abramo, ao lado do militante Apolônio de Carvalho, combatente na Guerra Civil Espanhola e na Resistência Francesa.
Pude conhecer também a humilde retaguarda do futuro partido: uma comunidade popular em Vila Yolanda, bairro operário de Osasco. Aí se reuniam para orar e debater as necessidades e os anseios dos migrantes nordestinos acantonados na cidade. Era o momento forte do brotar de um sentimento democrático que aspirava formular a equação (impossível?) de fraternidade e participação política em pleno regime capitalista... Em torno de um padre operário francês, Domingos Barbé, cujos dedos tinham sido decepados na máquina da fábrica, discutiam um pouco de tudo: a oportunidade das greves, a não violência ativa, a libertação da mulher, a educação dos adolescentes, a péssima condução urbana, a avidez das empreiteiras, o poder da mídia... E desejavam que eu lhes contasse a história do nosso Brasil e falasse de literatura e (por que não?) de romances que mostrassem as dores e os sonhos dos pobres. Escolhi Vidas Secas e percebi que eles se identificavam com os migrantes que habitavam as páginas árduas e límpidas de Graciliano Ramos.
Foram esses os fundadores anônimos do PT em Osasco. Domingos Barbé, que vinha de uma França onde o laicismo era a religião republicana, surpreendia-se e maravilhava-se com a possibilidade de criação de um partido em que socialismo e cristianismo pudessem dar as mãos sem ódios ideológicos seculares. Entregava-me listas de princípios que, cartesianamente, considerava básicos para a constituição desse inacreditável partido sem preconceitos. Nesse mesmo 1980 saía a primeira tradução brasileira de um vibrante ensaio de Rosa Luxemburgo, O Socialismo e as Igrejas – O comunismo dos primeiros cristãos, opúsculo publicado pela primeira vez, em 1905, pelo Partido Social Democrata Polonês. As boas-novas pareciam convergir.
A chegada ao poder terá desmentido os ideais daquele tempo que parecerá mítico aos que não sentiram a alegria de conhecê-lo de perto? É o caso de responder com objetividade: sim e não. Sim, porque há uma relação intrínseca entre poder e abuso do poder, poder e corrupção, realidade que não é absolutamente só brasileira, pois tem sido fartamente constatada nos países capitalistas e estatistas de todo o mundo, sem exceção. No Brasil, praticamente não há formas de democracia participativa, precisamente um dos valores pregados pelos militantes do PT, a sua ausência é causa direta dos desvios que tanto abalaram a confiança no partido. A seiva moral que se transmite dos eleitores para os eleitos vai secando à medida que os últimos se distanciam dos primeiros e se enleiam na teia da burocracia partidária.
Mas cuidado com as drásticas excomunhões! O PT que apoiou a gestão de Erundina em São Paulo, o PT que deu à prefeita secretários como Paulo Freire, Paul Singer e Marilena Chauí, foi um viveiro de propostas e ações dignas de um governo popular. O ethos distributivista dos governos Lula e Dilma tirou efetivamente da pobreza extrema 36 milhões de brasileiros, o que eleitores das classes médias e altas envenenados pela orquestração midiática recusam-se a admitir na sua cegueira de consumistas inveterados.
Hoje, em vista dos escândalos na Petrobras, o PT é o bode expiatório fácil de todas as situações difíceis por que passa a economia brasileira em um contexto internacional adverso. A parte de responsabilidade que lhe cabe é hipertrofiada pela luta sem quartel a que estamos assistindo desde a última campanha eleitoral. Mas, maior ou menor, essa responsabilidade tem de ser apurada e cobrada pela nação. Será um justo purgatório, próprio do sim e do não, mas não a punição infernal com que desejam castigá-lo os seus adversários, maus perdedores no jogo democrático.
Alfredo Bosi - professor emérito de Literatura Brasileira da Universidade de São Paulo e membro da Academia Brasileira de Letras.
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