Por Sebastião Nunes  Existem escritores desprezados antes de serem lidos. Saint-Exupéry é um deles. De sua literatura adulta, li todos os livros, superada minha “fase de formação”, quando é normal forte preconceito contra os que contrariam nossas fórmulas apriorísticas. Ao contrário do que se poderia pensar, o meio literário é constituído de panelinhas, rancor, vaidade e preconceito. É raríssimo haver crítica isenta e leitura imparcial. A mais constante acusação contra Saint-Exupéry, esse aviador pioneiro e humanista francês, que pouco ligava para as convenções do mesquinho mundo literário, era a de ser citado nos concursos de miss, quando se perguntava às mocinhas, entre outras coisas, sobre seu livro preferido. A maioria respondia “O pequeno príncipe”, por ser best-seller e leitura frequente nas escolas. Daí o desprezo que nós, jovens, ingênuos e arrogantes, dedicávamos ao autor, mesmo desconhecendo-lhe a obra. Confessado meu pecado juvenil, reproduzo o capítulo X da décima oitava edição da Agir, publicada em 1975, em tradução de D. Marcos Barbosa. O único comentário a fazer é que “O pequeno príncipe” foi escrito para crianças, mas como crítica à visão de mundo dos adultos, pois, dizia o principezinho, “as pessoas grandes não compreendem nada sozinhas, e é cansativo, para as crianças, estar toda hora explicando”. Ele se achava na região dos asteroides 325, 326, 327, 328, 329, 330. Começou pois a visitá-los, para procurar uma ocupação e se instruir. O primeiro era habitado por um rei. O rei sentava-se, vestido de púrpura e arminho, num trono muito simples, posto que majestoso. – Ah! Eis um súdito, exclamou o rei ao dar com o principezinho. E o principezinho perguntou a si mesmo: – Como pode ele reconhecer-me, se jamais me viu? Ele não sabia que, para os reis, o mundo é muito simplificado. Todos os homens são súditos. – Aproxima-te, para que eu te veja melhor, disse o rei, todo orgulhoso de poder ser rei para alguém. O principezinho procurou com os olhos onde sentar-se, mas o planeta estava todo atravancado pelo magnífico manto de arminho. Ficou, então, de pé. Mas, como estava cansado, bocejou. – É contra a etiqueta bocejar na frente do rei, disse o monarca. Eu o proíbo. – Não posso evitá-lo, disse o principezinho confuso. Fiz uma longa viagem e não dormi ainda... – Então, disse o rei, eu te ordeno que bocejes. Há anos que não vejo ninguém bocejar! Os bocejos são uma raridade para mim. Vamos, boceja! É uma ordem! – Isso me intimida... eu não posso mais... disse o principezinho todo vermelho. – Hum! Hum! respondeu o rei. Então... então eu te ordeno ora bocejares e ora... Ele gaguejava um pouco e parecia vexado. Porque o rei fazia questão fechada de que sua autoridade fosse respeitada. Não tolerava desobediência. Era um monarca absoluto. Mas, como era muito bom, dava ordens razoáveis. “Se eu ordenasse, costumava dizer, que um general se transformasse em gaivota, e o general não me obedecesse, a culpa não seria do general, seria minha.” – Posso sentar-me? interrogou timidamente o principezinho. – Eu te ordeno que te sentes, respondeu-lhe o rei, que puxou majestosamente um pedaço do manto de arminho. Mas o principezinho se espantava. O planeta era minúsculo. Sobre quem reinaria o rei? – Majestade... eu vos peço perdão de ousar interrogar-vos... – Eu te ordeno que me interrogues, apressou-se o rei a declarar. – Majestade... sobre quem é que reinais? – Sobre tudo, respondeu o rei, com uma grande simplicidade. – Sobre tudo? O rei, com um gesto discreto, designou seu planeja, os outros, e também as estrelas. – Sobre tudo isso? – Sobre tudo isso... respondeu o rei. Pois ele não era apenas um monarca absoluto, era também um monarca universal. – E as estrelas vos obedecem? – Sem dúvida, disse o rei. Obedecem prontamente. Eu não tolero indisciplina. Um tal poder maravilhou o principezinho. Se ele fosse detentor do mesmo, teria podido assistir, não a quarenta e quatro, mas a setenta e dois, ou mesmo a cem, ou mesmo a duzentos pores de sol no mesmo dia, sem precisar sequer afastar a cadeira! E como se sentisse um pouco triste à lembrança do seu pequeno planeta abandonado, ousou solicitar do rei uma graça: – Eu desejava ver um pôr de sol... Fazei-me esse favor. Ordenais ao sol que se ponha... – Se eu ordenasse a meu general voar de uma flor a outra como borboleta, ou escrever uma tragédia, ou transformar-se em gaivota, e o general não executasse a ordem recebida, quem – ele ou eu – estaria errado? – Vós, respondeu com firmeza o principezinho. – Exato. É preciso exigir de cada um o que cada um pode dar, replicou o rei. A autoridade repousa sobre a razão. Se ordenares a teu povo que ele se lance ao mar, farão todos uma revolução. Eu tenho o direito de exigir obediência porque minhas ordens são razoáveis. – E meu pôr de sol? lembrou o principezinho, que nunca esquecia a pergunta que houvesse formulado. – Teu pôr de sol, tu o terás. Eu o exigirei. Mas eu esperarei, na minha ciência de governo, que as condições sejam favoráveis. – Quando serão? indagou o principezinho. – Hein? respondeu o rei, que consultou inicialmente um grosso calendário. Será lá por volta de... por volta de sete horas e quarenta, esta noite. E tu verás como sou bem obedecido. O principezinho bocejou. Lamentava o pôr de sol que perdera. E depois, já estava se aborrecendo um pouco! – Não tenho mais nada que fazer aqui, disse ao rei. Vou prosseguir minha viagem. – Não partas, respondeu o rei, que estava orgulhoso de ter um súdito. Não partas: eu te faço ministro! – Ministro de quê? – Da... da justiça! – Mas não há ninguém a julgar! – Quem sabe? disse o rei. Ainda não dei a volta no meu reino. Estou muito velho, não tenho lugar para carruagem, e andar cansa-me muito. – Oh! Mas eu já vi, disse o príncipe que se inclinou para dar ainda uma olhadela do outro lado do planeta. Não consigo ver ninguém... – Tu julgarás a ti mesmo, respondeu-lhe o rei. É o mais difícil. É bem mais difícil julgar a si mesmo que julgar os outros. Se consegues julgar-te bem, eis um verdadeiro sábio. – Mas eu posso julgar-me a mim próprio em qualquer lugar, replicou o principezinho. Não preciso, para isso, ficar morando aqui. – Ah! disse o rei, eu tenho quase certeza de que há um velho rato no meu planeta. Eu o escuto de noite. Tu poderás julgar esse rato. Tu o condenarás à morte de vez em quando: assim a sua vida dependerá da tua justiça. Mas tu o perdoarás cada vez, para economizá-lo. Pois só temos um. – Eu, respondeu o principezinho, eu não gosto de condenar à morte, e acho que vou mesmo embora. – Não, disse o rei. Mas o principezinho, tendo acabado os preparativos, não quis afligir o velho monarca: – Se Vossa Majestade deseja ser prontamente obedecido, poderá dar-me uma ordem razoável. Poderia ordenar-me, por exemplo, que partisse em menos de um minuto. Parece-me que as condições são favoráveis... Como o rei não dissesse nada, o principezinho hesitou um pouco; depois suspirou e partiu. – Eu te faço meu embaixador, apressou-se o rei em gritar. Tinha um ar de grande autoridade. As pessoas grandes são muito esquisitas, pensava, durante a viagem, o principezinho. Imagens
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