Por Ednilson Machado e Patrícia Cornils
A denúncia do mensalão, feita há 10 anos pelo ex-deputado Roberto Jefferson em entrevista à Folha de S. Paulo, transformou-se nos anos que se seguiram numa implacável perseguição política e culminou num julgamento de exceção marcado por graves erros e distorções da verdade.
Roberto Jefferson, acuado pelas acusações de que seu partido, o PTB, estaria desviando dinheiro dos Correios, partiu para o ataque contra o governo, o PT e em especial José Dirceu. A campanha midiática após a denúncia obrigou o ex-ministro a deixar o governo para se defender e levou, ainda em 2005, à cassação do mandato de Dirceu na Câmara dos Deputados.
Mas por que podemos afirmar que o mensalão terminou em um julgamento de exceção? Porque, diferentemente do que concluiu o Supremo Tribunal Federal diante forte pressão da mídia que induziu a opinião pública contra os réus na última década, nunca houve compra de votos nem desvio de dinheiro público, como demonstra a revista RETRATO DO BRASIL.
As ALEGAÇÕES FINAIS apresentadas pela defesa de Dirceu em 2011 derrubam, com base no depoimento de dezenas de testemunhas, que nunca houve compra de votos e que o ex-ministro nunca se envolveu nos acordos financeiros entre o PT e a base aliada.
O julgamento da AP 470 cometeu erros crassos ao concluir que houve crimes de corrupção e peculato. Os R$ 73,8 milhões supostamente desviados do Fundo Visanet e Banco do Brasil foram, na verdade, integralmente gastos em campanhas de publicidade e de patrocínio do cartão Ourocard. Auditorias do Banco do Brasil e de escritórios independentes confirmam a prestação de serviços, porém toda a farta documentação a respeito foi ignorada ao longo do julgamento.
O dinheiro que o PT repassou aos partidos da base aliada, respeitando as alianças fechadas para as eleições de 2002 e 2004, foi obtido por meio de empréstimos legais junto aos bancos Rural e BMG, que seriam quitados com doações de campanha não declaradas ao TSE. O único erro do PT, assumido publicamente desde 2005, foi recorrer ao chamado caixa dois – dinheiro doado por grandes empresários – para financiar suas campanhas.
O julgamento ainda entra para a história por violar importantes garantias constitucionais e inovar em jurisprudências na Suprema Corte, como o desrespeito à presunção da inocência, à inversão do ônus da prova e à dispensa de atos de ofício para caracterização do crime de corrupção. Os ministros também recorreram equivocadamente à teoria do domínio do fato – tese elaborada na Alemanha para punir crimes da Segunda Guerra Mundial – para, mesmo sem provas, condenar o ex-ministro José Dirceu.
Sem tais ineditismos, a maioria dos ministros, conduzida pelo relator Joaquim Barbosa e pelo então presidente Carlos Ayres Brito, não teria como condenar os réus pelos crimes de corrupção ativa e passiva, peculato, evasão de divisas e, sobretudo, formação de quadrilha. Em 13 de janeiro de 2014, este blog publicou uma lista com as 14 PERGUNTAS ESSENCIAIS SOBRE AS VIOLAÇÕES E OS ERROS DA AP 470.
Em sua sabatina no Senado em 5 de junho de 2013, Roberto Barroso, hoje ministro relator da ação penal, afirmou que o julgamento do mensalão foi um "ponto fora da curva". Inúmeros advogados e juristas já haviam se manifestado neste sentido em 2012.
"O processo não tem valor jurídico. Foi influenciado por fatores políticos, sem dúvida alguma, pela insistente campanha de grande imprensa e pelos desequilíbrios emocionais do ministro Joaquim Barbosa", afirma Dalmo de Abreu Dallari, um dos mais respeitados juristas do Brasil.
Em entrevista à jornalista Monica Bergamo, o jurista Ives Gandra Martins foi enfático ao afirmar que o ex-ministro José Dirceu foi condenado sem provas e que os ministros erraram ao recorrer à teoria do domínio do fato para fundamentar a condenação de Dirceu.
"O domínio do fato é uma novidade absoluta no Supremo. Nunca houve essa teoria. Foi inventada, tiraram de um autor alemão, mas também na Alemanha ela não é aplicada. E foi com base nela que condenaram José Dirceu como chefe de quadrilha", afirmou Gandra Martins. "Eu li todo o processo sobre o José Dirceu, ele me mandou. Nós nos conhecemos desde os tempos em que debatíamos no programa do Ferreira Netto na TV. Eu me dou bem com o Zé apesar de termos divergido sempre e muito. Não há provas contra ele. Nos embargos infringentes, o Dirceu dificilmente vai ser condenado pelo crime de quadrilha".
A trajetória da condenação
O ex-ministro foi condenado pelo crime de corrupção ativa em 9 de outubro de 2012, véspera do primeiro turno das eleições municipais, numa forçada coincidência para influenciar o resultado das urnas contra o PT. Naquela noite, José Dirceu divulgou a carta AO POVO BRASILEIRO repudiando a decisão do STF.
Poucos dias depois, em 22 de outubro, véspera do segundo turno das eleições, o Supremo condenou o ex-ministro pelo crime de formação de quadrilha. José Dirceu voltou a se manifestar e publicou a nota NUNCA FIZ PARTE NEM CHEFIEI QUADRILHA.
Em 12 de novembro de 2012, o Supremo calculou a pena de José Dirceu em 10 anos e 10 meses de prisão em regime fechado. Na carta INJUSTA SENTENÇA, o ex-ministro condenou mais uma vez a forma como o julgamento foi conduzido: "A pena de 10 anos e 10 meses que a suprema corte me impôs só agrava a infâmia e a ignomínia de todo esse processo, que recorreu a recursos jurídicos que violam abertamente nossa Constituição e o Estado Democrático de Direito, como a teoria do domínio do fato, a condenação sem ato de ofício, o desprezo à presunção de inocência e o abandono de jurisprudência que beneficia os réus".
Um ano depois, em pleno feriado da Proclamação da República, o ministro Joaquim Barbosa determinou a prisão de Dirceu e outros réus, iniciando um novo capítulo de ilegalidades, agora na execução das penas. O Supremo inovou mais uma vez e decretou o "trânsito em julgado parcial", isto é, concluiu que o julgamento havia acabado antes mesmo que os embargos infringentes fossem analisados. "Eu nunca imaginei que o Supremo Tribunal Federal fosse tomar o rumo que tomou", afirmou à época o jurista Celso Antônio Bandeira de Mello.
Na tarde em que foi preso, o ex-ministro divulgou a CARTA ABERTA AO POVO BRASILEIRO. "Como sempre, vou cumprir o que manda a Constituição e a lei, mas não sem protestar e denunciar o caráter injusto da condenação que recebi. A pior das injustiças é aquela cometida pela própria Justiça", afirma o texto. "É público e consta dos autos que fui condenado sem provas. Sou inocente e fui apenado a 10 anos e 10 meses por corrupção ativa e formação de quadrilha – contra a qual ainda cabe recurso – com base na teoria do domínio do fato, aplicada erroneamente pelo STF".
O texto prossegue: "fui condenado sem ato de oficio ou provas, num julgamento transmitido dia e noite pela TV, sob pressão da grande imprensa, que durante esses oito anos me submeteu a um pré-julgamento e linchamento".
José Dirceu começou a cumprir sua pena em regime fechado, embora o plenário do Supremo tenha decidido que caberia naquele momento, antes da votação dos embargos infringentes, que ele cumprisse a pena em regime semiaberto. Começaram, então, a série de boatos de que Dirceu e os demais presos do mensalão teriam regalias e privilégios na prisão. A onda de boatos foi alimentada pela imprensa, em especial pelo jornal O Globo.
Em janeiro de 2014, um novo golpe contra a liberdade de Dirceu: a Folha de S. Paulo publicou uma nota mentirosa de que Dirceu teria usado um telefone celular dentro da prisão. Três sindicâncias foram abertas e concluíram que nunca houve qualquer telefonema. No entanto, os boatos sobre supostas regalias e o factoide do telefonema mantiveram Dirceu preso no regime fechado por mais de sete meses.
Somente em julho de 2014, quando Joaquim Barbosa já havia anunciado sua aposentadoria e renunciado à relatoria da AP 470, o ex-ministro teve o seu direito ao trabalho externo reconhecido pelo plenário do Supremo. Uma cronologia, publicada pelo site Conjur em 24 de julho de 2014, REVELOU A FALTA DE MOTIVOS PARA A JUSTIÇA NEGAR O SEMIABERTO A JOSÉ DIRCEU.
Os erros cometidos pelo Supremo em 2012 começaram e ainda precisam ser corrigidos pela história. Em fevereiro de 2014, quando os réus já estavam presos e Dirceu era assediado pelos boatos de privilégios, a previsão do jurista Ives Gandra Martins se confirmou: o plenário do Supremo concluiu que o crime de formação de quadrilha não existiu. O ex-ministro passou a cumprir exclusivamente a pena de 7 anos e 11 meses por corrupção ativa.
Em 13 de maio de 2014, a defesa de José Dirceu apresentou denúncia na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA), para que o órgão obrigue o Brasil, em respeito ao Pacto de San José, a cumprir o artigo oitavo da Convenção que estabelece o direito constitucional do condenado de recorrer a instância superior da Justiça. Ainda não há prazo para que a CIDH se manifeste sobre o tema.
Ainda no Supremo Tribunal Federal, onde o duplo grau de jurisdição não foi respeitado, o ex-ministro José Dirceu tem direito de pedir a revisão criminal, apresentando novas provas de que não praticou o crime de corrupção ativa.
Se, nos últimos dez anos, uma denúncia infundada e um julgamento de exceção levaram José Dirceu para a prisão, a próxima década terá de servir para que a Justiça brasileira reconheça e corrija os erros que escreveram uma página sombria em nosso Estado Democrático de Direito.
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