por Gregorio Duvivier
Nunca aprendi a rezar o Pai Nosso. Comemorávamos Natal só porque é aniversário da minha mãe. Celebrávamos a Páscoa, mas confesso com bastante vergonha que não faço ideia do que significa. Sim, sei que tem a ver com Jesus. Mas não sei qual era a relação dele com o coelho, e nem por que raios esse coelho põe ovos, e por que diabos são de chocolate.
O mais perto que tinha de religião lá em casa era a música: meus pais só veneravam deuses que soubessem tocar. Ninguém rezava antes de comer, mas minha mãe botava a gente pra dormir religiosamente cantando Noel e acordava cantando Cartola. Meu pai passava o dia no sax tocando Pixinguinha e a noite no piano tocando Nazareth. Música não era um pano de fundo, era o caminho, a verdade, a vida. Tom era o Pai, Chico, o Filho, Caetano, o Espírito Santo.
Podia falar os palavrões que eu quisesse, mas ai de mim se ousasse tocar violão com acordes simplificados. "A pessoa que fez esse arranjo devia ir presa", dizia minha mãe. Preferiam me ver pichando muros a me ver batucando atravessado. Quando descobriram que eu fumava maconha, meus pais me disseram que não tinha nada de errado, desde que eu só fumasse em casa. Quando eu comprei um CD do LS Jack, disseram que não tinha nada de errado, desde que eu nunca ouvisse aquilo em casa.
Às vezes organizavam um sarau que parecia missa. "Silêncio, que se vai cantar o fado", dizia a Luciana Rabello, e daí tocavam choro como quem reza. Todos se calavam como numa igreja. A criança que abrisse o bico tomava logo um tabefe. Aquilo era sagrado. Pra mim, ainda é.
Herdei deles a devoção (sem herdar, no entanto, o talento para a música). Às vezes queria me importar menos com isso. Quando vejo as agressões ao Chico –e não estou falando do bate-boca na calçada, mas da campanha difamatória da qual os ignorantes do Leblon são meros leitores–, para mim é como se chutassem uma santa ou rasgassem a Torá. Como sou a favor da liberdade total de expressão, inclusive quando ela fere o sagrado dos outros, limito-me a torcer para que passem a eternidade ouvindo Lobão e Fábio Jr., intercalados com discursos do Alexandre Frota e Cunha tocando bateria. Uma coisa é certa: a oposição e sua trilha sonora se merecem.
na Folha de São Paulo
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