Carta para Helena


Carta para Helena

Brasil, 31 de agosto de 2016

Filha, sei que quando ler esta carta e compreender o que ela contém haverá se passado 15, talvez 20 anos, de um dos momentos mais tristes e repugnantes que pude presenciar em nosso amado Brasil. Espero que diante desta leitura, o país - e o mundo - já esteja vivenciando uma nova era, em que as pessoas possam estar mais unidas em torno do respeito, da paz, em prol de uma sociedade mais justa, em que humanos não subjuguem os irmãos de caminhada terrena. Em que as pessoas não tenham mais tanto medo das próprias sombras.

Escrevo, filha, porque sei que os livros tendem sempre a contar a História pelo lado dos "vencedores" (atenção a estas aspas ;-)), calcada em informações tidas como "oficiais" e que têm em sua fonte quase sempre um pequeno grupo de empresários da mídia, que são pagos em grande parte pelos agentes do sistema financeiro mundial para divulgar aquilo que é de seus interesses.

Neste dia, filha, está sendo concretizado mais um golpe, agora institucional, em nosso País. E desta vez não foi preciso colocar os tanques na rua - ao menos por enquanto. A presidenta, Dilma Rousseff, eleita com mais de 54 milhões de votos de brasileiros, está sendo definitivamente afastada do poder pelo voto de 61 senadores, sem haver no mínimo um consenso se ela realmente cometeu "crime orçamentário" do qual é acusada - e pelo que o papai estuda não há crime algum.

Comecei a escrever este texto dois dias antes. Naquele dia 29 de agosto, a então presidenta afastada - após ser presa, torturada e julgada sumariamente durante a ditadura militar, uma página infeliz de nossa História - foi interrogada por mais de 14 horas no Senado Federal.

Respondeu a todas as perguntas, deixando claro que a principal motivação para o golpe sempre foi política - iniciado por vingança do então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que abriu o processo por não ter o apoio do PT, partido de Dilma, para interromper um processo de cassação no Conselho de Ética, o primeiro a ser enfrentado por ele após anos e anos de conhecidos achaques, conluios e distribuição de propinas que permitiram, à época, que ele controlasse as vontades - e os votos - de cerca de 200 deputados.

Para o papai, esse processo, no entanto, começou bem antes. Mais precisamente quando o antecessor de Dilma, o ex-presidente Lula, ao vencer as eleições de 2002 com o tema "a esperança venceu o medo", deu sua primeira entrevista ao Jornal Nacional, da mesma TV Globo que foi implantada com recursos de fundações que serviam aos interesses dos financistas para dar suporte ao golpe militar, de 1964. Dias depois, Lula ainda anunciou para o Ministério da Fazenda, Henrique Meirelles, ex-presidente do Banco de Boston, que voltaria a assumir, não por acaso, a mesma pasta no interino governo golpista de 2016.

E como se diz nesses dias sombrios, o Brasil não é para amadores. E sabemos que a História sempre se repete - a primeira vez como tragédia e depois como farsa, como diria Karl Marx.

Lula fez um dos governos mais voltados para o social que o Brasil já teve. Comparável, sempre, a Getúlio Vargas e João Goulart, outros dois grandes presidentes de nosso país. Indiscutivelmente, Lula elevou o país a um outro patamar no planeta e fez crer que o futuro já havia chegado para esta terra destinada a cumprir papel tão importante entre as nações.

Porém, não atentou que "nunca antes na História desse País" - como era seu bordão - uma pequena classe burguesa atrelada aos interesses dos grupos hegemônicos mundiais permitiu dividir seus lucros e espaços com quem considera "menos" do que ela.

Desde outubro de 2014, quando Dilma venceu as eleições verdadeiras e conquistou seu segundo mandato - você ainda nem na barriga da mamãe estava - passei a "falar" menos e observar mais. A buscar compreender melhor e acreditar no que seria inevitável, dado o jogo de cartas marcadas e a clara manipulação que desfizeram amizades, criaram conflitos e alargaram o fosso social já tão gigantesco de nosso País. Em meio a tanto ódio propagado em redes sociais, escolhi gastar energia com o quê e com quem realmente valesse a pena - e isso se deu a custo de muito autocontrole, sua mãe que o diga.

Antes mesmo de Dilma assumir, já era claro que a "Casa Grande" não deixaria a "Senzala" governar por mais quatro anos. Diante de um cenário mundial em que muitas feridas mal curadas do passado tornaram-se escaras de preconceito, conservadorismo e fanatismo, o fascio deu novamente as caras e encontrou eco nas sombras reprimidas de milhares de brasileiros que, inflados, mal sabiam o que atacavam e defendiam nas ruas - e nem mesmo se atacavam ou defendiam. Usados como massa de manobra, queriam inconscientemente liberar seus medos, seus monstros internos no outro, em vez de se ocupar deles.

Hoje, dia 31 de agosto, ainda são poucos os que sabem o real motivo dessa empulhação que resultou em mais uma página triste de nossa História. Os velhos coronéis ressurgem das suas catacumbas. Centenas de rostos da opressão de anos a fio se acomodam à face de Michel Temer. Tempos sombrios teimam em sair do passado para ocupar as vias do presente. Por pouco tempo, tenho certeza.

Sim, filha, eu e sua mãe sempre tivemos esta "estranha" mania de ter fé na vida, de sermos otimistas demais. Mesmo diante desse cenário, continuamos do lado "esquerdo" da História - e, como já disse Darcy Ribeiro, não me agradaria nem um pouco estar ao lado dos "vencedores".

Reitero que o golpe ocorreu, sim. E não apenas com o Brasil. Todos os brasileiros, filha, sofreram durante esse processo "tapas na cara" - do grego kolaphos, de onde vem a palavra golpe. Em alguns, estes tapas causaram revoltas infantis, fazendo com que fiquem ainda mais enclausurados em seus preconceitos, rancores e mágoas. Creio, no entanto, que muitos outros despertaram com esses golpes, encararam seus medos, suas sombras e todas aquelas que há centenas de anos pairam sobre nosso país - que nada mais é do que um reflexo dos que vivem nele.

Por este motivo, acredito que sairemos ainda mais fortes desta página de nossa História para escrever novos capítulos com mais lucidez. Sabendo que muitos passos foram dados - alguns deles em falso - para chegarmos até aqui, seguimos acreditando nesta grande e infinita revolução. Uma revolução pacífica que há milhares de anos vem sendo travada dentro e fora de cada ser que acredita que o amor é a mais poderosa arma contra qualquer tipo de golpe - seja na face ou no governo de um país.

Por fim, Helena, desejo apenas que quando ler estas palavras esteja ajudando a escrever o novo capítulo de nossa História com a arma que eu e sua mãe lhe ensinamos a usar dia-a-dia e que compreenda que o medo nunca vencerá a esperança em lutar para que nosso País cumpra seu papel nessa nova era da humanidade.

Com amor,

Papai (Plínio Teodoro)

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