Com o golpe, acaba-se um tempo, começa outro. Chega ao fim a República de 1988, a Nova República, como também é chamado o período democrático que se seguiu ao fim da ditadura, em 1985, e foi moldado pela Constituição de 1988. No tempo nebuloso do pós-golpe, clara será a figura de Dilma Rousseff como mártir da democracia ferida ainda na infância. A crise vai se aprofundar, trazendo mais dores e perdas para todos. Os vencedores vão desfrutar por algum tempo o poder, levando para sempre a marca de golpistas. Os que resistiram amargarão a derrota, mas seguirão livres de vergonha ou arrependimento. O Brasil levará algum tempo para se reencontrar, mas Dilma já estará entre os personagens maiores desta saga em que as elites quase sempre decidem excluindo o povo. Dilma, como Lula, como Jango, como Getúlio, despertou as iras do conservantismo nacional porque tentou uma conciliação democrática, que incluía o povo no projeto de Nação.
As razões para sua deposição não convenceram a consciência democrática do Brasil nem a inteligência internacional mas isso pouco importou à maioria formada, capitaneada por PMDB e PSDB, para realizar o desígnio de derrubá-la. Era tempo de encerrar o ciclo de governos petistas pelo método de sempre, dispensando a soberania do voto, antes que chegasse a eleição de 2018. Não fora possível remover Lula porque, num cenário internacional mais favorável, ele promoveu uma conciliação de classes exitosa, em que as elites ganharam muito mas alguns nacos do crescimento, e do orçamento, ficou para os mais pobres. E com isso, foi blindado pela imensa popularidade. Diferentemente, Dilma chegou ao governo quando os efeitos da crise global alcançaram o Brasil, resfriando a economia e afetando a arrecadação. Erros de calibragem podem ter agravado o quadro, como ela já reconheceu, mas não constituíram os crimes que os arquitetos do golpe formataram, a partir das dificuldades fiscais, para viabilizar o impeachment.
No futuro, quando se falar que a primeira mulher presidente do Brasil sofreu impeachment por conta de "pedaladas fiscais", será explicado que, num quadro fiscal apertado, seu governo atrasou, como já fora feito no passado, o ressarcimento do Banco do Brasil pelo subsídio aos juros para agricultores. Deverá ser dito que ela mesma não tendo tido ação direta nesta gestão, foi acusada e condenada por contratar operação de crédito com banco oficial, violando a lei de responsabilidade fiscal. Será dito que remanejou recursos do orçamento por decreto, sem aprovação legislativa, conforme autorizado pela lei orçamentária. Mas que, embora seu governo tenha reajustado a meta fiscal anual, alegaram que os decretos estouraram a meta antes de seu reajuste, embora o resultado primário seja medida anual. Quando isso for contado ao futuro, alguém lembrará a diferença entre o Senado brasileiro e o dos Estados Unidos, que barrou o impeachment de Andrew Jackson em 1868 e o de Clinton em 1998, considerando a punição desproporcional à acusação. A Câmara autorizara o processo contra Jackson, no curso de uma disputa política, por ter demitido um secretário sem licença do Congresso, e o de Clinton, como todos se lembram, por perjúrio no caso Monica Levinsky. Lá, o Senado foi moderador. Aqui, foi cassador. Se na Câmara houve a vingança de Eduardo Cunha, no Senado muita gente acertou contas com Dilma e o PT. E isso está nos anais, nos discursos em que recordam mágoas e ressentimentos por não terem sido mais afagados ou contemplados.
Condenada sem crime demonstrado, resistindo e denunciando a natureza golpista do processo, enfrentando seus caçadores cara a cara, na véspera da condenação, desconcertando-os com sua firmeza e sua dignidade, amparando-se apenas no apoio popular, Dilma tornou-se mártir da democracia. O que a vida quer da gente é coragem, como disse na primeira posse, repetindo Guimarães Rosa.
A fogueira para Dilma começou a ser montada quando ela ousou, no primeiro mandato, fazer uma faxina demitindo de seu ministério políticos acusados de corrupção. Muitas consequências vieram na disputa acirrada pela reeleição, que também deixou sequelas. A base parlamentar começou a desidratar-se mas ela se reelegeu e o segundo mandato deixou a Lava Jato avançar, garantindo autonomia às investigações que alcançaram a nomenclatura política. E o que dizer de sua repulsa às concessões fisiológicas aos partidos, em nome da governabilidade? Como pano de fundo, o sistema político-eleitoral brasileiro, que garante a eleição direta de presidentes mas não lhes proporciona a formação de maioria parlamentar, impondo a necessidade das coalizões pragmáticas, sem base ideológica ou programática. Quando vieram as estranhas manifestações de 2013, e a popularidade de Dilma sangrou pela primeira vez, os tubarões se prepararam para o ataque. Sabotando medidas, o Congresso agravou a crise econômica para tornar a paisagem mais favorável ao golpe. A mídia e a Lava Jato fizeram impecavelmente sua parte.
Era tempo, para as elites, de dar um basta no ciclo de governos populares, com suas políticas públicas para pobres que elevaram tanto o gasto público. Que volte o Estado mínimo e os direitos rarefeitos. Que todos se convençam de que é melhor pagar pelo ensino e pela saúde, e aposentar-se aos 70 anos de idade, se a vida permitir. Engendre-se um jeito de remover Dilma.
Por último, mas não menos importante, o martírio de Dilma incluiu também o preconceito de gênero, a misoginia de uma elite branca, rica e máscula, como tão bem expressa o ministério de Temer. Dilma foi criticada pelas roupas que usava, foi acusada de ser instável, dura e temperamental, de ser histérica e tomar remédios para se controlar. No curso do processo, circulou o boato de que tentara se matar. Ora lhe imputavam a fragilidade "feminina", ora uma dureza inabilidosa.
O golpe passou, as feridas estão abertas, mas Dilma já entrou para a História. Como heroína, como mártir da democracia.
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