– Pedro! – trovejou Deus, quase matando de susto os anjos e os querubins que rodeavam Seu trono.
– Droga – resmungou São Pedro, que jogava porrinha com o arcanjo Gabriel. – Isto aqui já foi mais tranquilo.
Enquanto Gabriel, suspirando, recolhia os palitos e a caixa de fósforos, São Pedro disparou rumo ao trono divino.
– Pois não, Senhor – disse o guardião das chaves celestiais. – Às Suas ordens!
– Onde andará aquele flautista – perguntou Deus a seu velho auxiliar –, aquele cara que enfeitiçava ratos e crianças?
– Sei quem é – disse São Pedro. – Deve estar no Inferno ou no Purgatório, não sei, mas posso me informar.
– Pode se informar? – explodiu Deus, furioso. – Traga-o aqui imediatamente, esteja onde estiver!
– Mesmo se estiver no Inferno? – espantou-se São Pedro.
– Mesmo se estiver no Inferno! – repetiu Deus, obstinado como todo deus.
ENTREGA EM DOMICÍLIO
Fiel cumpridor de seus deveres, São Pedro não falhou. Em pouquíssimo tempo o flautista de Hamelin, resgatado do Inferno, estava diante do Senhor.
– Tem certeza que é ele mesmo? – perguntou Deus desconfiado.
– Juro pela minha mãe que está logo ali tocando harpa, cantando hinos e catando piolho nos santos mais desmazelados – disse São Pedro.
Com olhos terríveis Deus encarou o assustado flautista:
– Você que enfeitiçou os ratos e as crianças de Hamelin?
– Eu mesmo, Excelência – respondeu o flautista. – Sou o maior encantador do mundo, desculpe a imodéstia. Encanto até pedra e árvore.
INTRODUÇÃO EXPLICATIVA
– Está bem – interrompeu Deus, impaciente como todo deus. – Não sei se você é versado em teologia, mas faz séculos que não me meto nos assuntos humanos. Desde os tempos do Velho Testamento, jurei para Mim mesmo que deixaria eles se virarem como pudessem. E deixei, completamente. Nem em futebol Eu me meto mais. Imagine se vou atender aos pedidos de todos os 22 jogadores, sem contar as famílias e as torcidas.
– Sim, Senhor – concordou o flautista. – Estou sabendo.
– Está sabendo do quê? – indagou Deus.
– Que Vossa Eminência não se mete em assuntos humanos, nem em futebol – respondeu o flautista. – Dá pra notar pela quantidade de besteiras que diariamente Suas criaturas fazem na Terra. Nem preciso citar o Bolsonaro, lógico.
Deus soltou uma gargalhada que estremeceu São Pedro, o flautista e as abóbadas celestes. Uma autêntica gargalhada divina.
– Gostei dessa – disse Deus. – Você é um cara ladino.
– Obrigado, Alteza – disse o flautista, curvando-se educadamente.
É PEGAR OU LARGAR
– Vamos ao que interessa – disse Deus, tornando-se novamente sério. – Tenho uma proposta a lhe fazer.
– Sim, Senhor, às Vossas ordens – declarou o flautista.
– Você me faz um grande favor e, em troca, sai do Inferno para o Céu. Para não dar na vista, passa uma temporada no Purgatório antes de se mudar de mala e cuia.
– E o que tenho de fazer, Majestade? – indagou o flautista, curioso, interessado e preocupado: quando a esmola é muita o santo desconfia.
– Você conhece uma cidade chamada Brasília, num país chamado Brasil?
– Conheço, Senhor. Foi lá que aprendi feitiçaria, hipnotismo e magia negra.
– Ótimo – continuou Deus. – Então minha escolha foi acertada.
– Com certeza, Senhor.
– Parece que lá se organizou o maior criatório de ratos de duas pernas do mundo.
– Não sabia disso, Senhor.
– Nem era para saber, é coisa recente. Desde a fundação havia bastante rato de duas pernas em Brasília, mas ratos discretos: bobeou, dançou. Só que de 2015 para cá, conforme nosso Serviço de Informações apurou, a maioria dos deputados, magistrados, senadores, assessores e dirigentes de órgãos públicos passou a ser atacada por vírus transmitidos pelo Rattus rattus, transformando-se em ratos de duas pernas. Verdadeira epidemia, que ninguém consegue debelar. Até semelha a Peste Negra da Idade Média.
– Todas as pessoas, Senhor? – perguntou o flautista.
– Eu disse a maioria, não todas. – respondeu Deus. – Parece que algumas nascem imunizadas contra o vírus. Mas a maioria é infectada, transformando-se em ratos de duas pernas, inclusive, pelo que foi apurado, o presidente-golpista e seus ministros. Tudo o que desejo é que você enfeitice esses ratos de duas pernas e os afogue no Lago Paranoá, um lago artificial bem fundo que tem por lá. Imagino que se esses ratos forem afogados a praga deixará de existir. Ou pelo menos diminuirá drasticamente.
– Nada feito – disse o flautista, entristecido por ter de recusar tão generosa oferta e, pior, ter de voltar para o Inferno. – Infelizmente sou incapaz dessa proeza.
– Incapaz, como? – espantou-se Deus.
– Pelo seguinte – explicou o flautista. – Atrair e enfeitiçar rato de quatro patas ou enfeitiçar criança, pedra e árvore é fácil. Mas atrair e enfeitiçar ratos de duas pernas, e ainda por cima em Brasília, a capital do Brasil? Ah, Senhor, é impossível. Depois de infectados, eles se tornam completamente surdos, exceto para a música dos conchavos, das mutretas e do toma-lá-dá-cá.