Hoje uma senhora me parou na rua e perguntou se eu fazia faxina.Altiva e segura, respondi:– Não. Faço mestrado. Sou professora.Da boca dela não ouvi mais nenhuma palavra. Acho que a incredulidade e o constrangimento impediram que ela dissesse qualquer coisa.Não me senti ofendida com a pergunta. Durante uma passagem da minha vida arrumei casas, lavei banheiros e limpei quintais. Foi com o dinheiro que recebia que por diversas vezes ajudei minha mãe a comprar comida e consegui pagar o primeiro período da faculdade.O que me deixa indignada e entristecida é perceber o quanto as pessoas são entorpecidas pela ideologia racista. Sim. A senhora só perguntou se eu faço faxina porque carrego no corpo a pele escura.No imaginário social está arraigada a ideia de que nós negros devemos ocupar somente funções de baixa remuneração e que exigem pouca escolaridade. Quando se trata das mulheres negras, espera-se que o nosso lugar seja o da empregada doméstica, da faxineira, dos serviços gerais, da babá, da catadora de papel.É esse olhar que fez com que o porteiro perguntasse no meu primeiro dia de trabalho se eu estava procurando vaga para serviços gerais. É essa mentalidade que levou um porteiro a perguntar se eu era a faxineira de uma amiga que fui visitar. É essa construção racista que induziu uma recepcionista da cerimônia de entrega da Medalha da Inconfidência, a maior honraria concedida pelo Governo do Estado de Minas Gerais, a questionar se fui convidada por alguém, quando na verdade, eu era uma das homenageadas.Não importa os caminhos que a vida me leve, os espaços que eu transite, os títulos que eu venha a ter, os prêmios que eu receba. Perguntas como a feita pela senhora que nem sequer sei o nome em algum momento ecoarão nos meus ouvidos. É o que nos lembra o grande Mestre Milton Santos:"Quando se é negro, é evidente que não se pode ser outra coisa, só excepcionalmente não se será o pobre. (...) Não será humilhado, porque a questão central é a humilhação cotidiana. Ninguém escapa, não importa que fique rico."É o que também afirma Ângela Davis. E ela vai além. Segundo a intelectual negra norte-americana, sempre haverá alguém para nos chamar de "macaca/o". Desde a tenra idade os brancos sabem que nenhum outro xingamento fere de maneira tão profunda a nossa alma e a nossa dignidade.O racismo é uma chaga da humanidade. Dificilmente as manifestações racistas serão extirpadas por completo. Em função disso, Ângela Davis nos encoraja a concentrar todos os nossos esforços no combate ao racismo institucional.É o racismo institucional que cria mecanismos para a construção de imagens que nos depreciam e inferiorizam.É ele que empurra a população negra para a pobreza e para a miséria. No Brasil, "a pobreza tem cor. A pobreza é negra."É o racismo institucional que impede que os crimes de racismo sejam punidos.É ele também que impõe à população negra os maiores índices de analfabetismo e evasão escolar.É o racismo institucional que "autoriza" a polícia a executar jovens negros com tiros de fuzil na cabeça, na nuca e nas costas.É o racismo institucional que faz com que as mulheres negras sejam as maiores vítimas da mortalidade materna.É o racismo institucional que alija os negros dos espaços de poder.O racismo institucional é o nosso maior inimigo. É contra ele que devemos lutar.A recente aprovação da política de cotas na UNICAMP e na USP evidencia que estamos no caminho certo.
De autoria da professora e historiadora Luana Tolentino, publicado originalmente na sua página do Facebook