Quarto de empregadas, por Manno Góes

Antes - bem antes - do Jammil e Uma Noites fazer sucesso, eu morava em um apartamento de luxo na Graça, bairro nobre de Salvador.

Sempre fui um privilegiado.

Estudava nos Maristas e batia umas duas punhetas por dia para minhas  professoras de inglês e de religião.

Minha mãe, separada de meu pai - sempre presente - trabalhava como funcionária pública no TRE e lamentava ver seus filhos adolescentes - eu e meu irmão - conduzindo suas vidas nos loucos anos oitenta com toda a liberdade maravilhosa que aqueles tempos proporcionavam.

Nossa irmã caçula, Leila Góes Boavista, acompanhava nossos apegos aos discos do Camisa de Vênus e Garotos Podres com a curiosidade das garotas que brincavam de boneca e encontravam tufos de maconha escondidos no sofá e armários achando que era orégano.

Eu tinha 15.

Paralamas lançou "Selvagem";  Legião lançou  "2".

Nada poderia ser tão perfeito.

Ouvia The Smiths sem parar e sabia que Fred Mercury era um Deus.

Imitava Paulo Ricardo com olhar 43 tocando baixo imaginário no espelho do banheiro e os Titãs lançaram "Cabeça Dinossauro" - o melhor disco do rock nacional da história.

O disco que me fez acreditar em Deuses.

Era 1986.

A vida parecia uma festa.

Em certas horas, isso é o que nos resta.

Jesus não tem dentes no país dos banguelas.

Desse tempo milagroso da pós-ditadura eu me lembro bem dos saraus na casa de minha vó, do medo que tinha da cocaína - meus primos pareciam ser muito loucos -  e dos jogos de handebol.

Eu era adolescente no período mais efervescente do rock nacional.

E vi um tal de Lu Caldas Luiz Caldas me fazer amar ser baiano.

Eu era feliz e sabia.

Lembro de cada trago, cada gota, cada cor.

E lembro dos cheiros.

E é sobre isso que quero falar: sobre cheiro.

Primeiro, sobre o cheiro do "quarto das empregadas" da casa de minha mãe.

Havia um cheiro próprio no "quarto das empregadas".

Sim.

Esses quartos eram tratados no plural.

Não importava se só cabia uma pessoa ali.

Não era o "quarto da empregada".

Era o "quarto das empregadas".

E não importava quantas empregadas passavam por ali, tendo acesso através de elevadores de serviço. O quarto mantinha o mesmo cheiro.

No prédio de luxo em que cresci ouvindo Black Sabath e Asa de Águia, havia, como era comum naquela época, um "quarto das empregadas" em cada apartamento.

Era um espaço minúsculo, sem janela, bem diferente dos desnecessários 210 metros quadrados que abrigavam a mim, meu irmão, minha irmã e minha mãe.

O "quarto das empregadas" era um cubículo  do tamanho de um banheiro de um apartamento simples de hoje em dia.

Era o "quarto das empregadas".

O quarto de Claudia. Claudinha.

Mulher nobre. Jovem. Pele morena e nariz redondo. Achava ela bonita.

Ela acordava seis da manhã todo dia para fritar ovos e peneirar café para mim e meus irmãos.

Sim.

Ela morava lá.

Com a gente.

No "quarto das empregadas".

Tinha vindo do interior e tomava banho todo dia em um banheiro que mais parecia um armário pequeno - em um apartamento de 210 metros quadrados - debaixo de um cano com uma ducha.

A água sempre fria.

O quarto, sempre quente.

Mas nada disso parecia incomodar Claudinha.

Todo dia de manhã havia pão quentinho, café com leite, cuscuz e ovos fritos sobre a mesa.

Nós, seus patrões, afinal,  tínhamos que ir bem alimentados para a escola.

Ouvir a palavra de Deus e cantar o hino nacional antes da aula;  sobre os olhares atentos dos funcionários vestidos de azul que nos observavam durante a execução do hino.

Seu Luís era quem cuidava da sonoplastia da escola.

Era adorado por todos. Sua barba sempre bem feita era um sinal de que ele era vaidoso e que sabia cuidar de si.

Acompanhava atento o respeito ao hino dos alunos da parte da manhã - alunos da sexta série ao terceiro ano colegial - e da parte da tarde - alunos da primeira série até a quinta.

Seu Luís assistia também ao início dos treinos de basquete, vôlei e handebol, que aconteciam depois do horário das aulas do período da tarde. Entre seis da tarde e oito da noite.

Ou seja: Seu Luís chegava nos Maristas provavelmente às seis horas da manhã.

E saia todo dia às 20:30, no mínimo.

Um dia fui com Reine - minha professora de inglês que eu não perdoava na punheta (e que depois me apaixonei - mas aí é outra história) na sala de descanso dos funcionários e professores buscar algo que ela queria me dar.

O quarto de descanso de Seu Luís não era muito maior que o quarto de Claudinha, na minha casa.

Era um cantinho sujo, empoeirado.

O local onde seu Luís deveria dar seus cochilos entre um recreio e outro.

O quartinho de seu Luís e o quartinho de Claudinha não eram parecidos em aspectos físicos.

Mas se assemelhavam muito em uma coisa: o cheiro.

Um cheiro de lençol molhado.

De suor.

De esforço e toalha usada.

Durante grande parte dos anos em que Claudinha trabalhou como doméstica lá em casa e Seu Luís trabalhou como sonoplasta gentil dos Maristas, nada mudava para eles.

Eram escravos. Eu não sabia. Eles não sabiam.

Claudia, mais escrava que Luís.

Porque Claudinha não tinha direito a nada.

Seguro desemprego. INSS. Nada.

Claudinha era uma escrava e eu não sabia. Não ligava. Nem me atentava a isso.

Ela ganhava um salário mínimo para passar o dia varrendo, lavando e cozinhando.

Cuidando de dois adolescentes e de uma criança.

Ganhando 80 dólares por mês. 

Ela foi morar no interior em 2005, durante o governo Lula.

Quando passou a ganhar perto de 300 dólares por mês.

Conseguiu uma vaga na faculdade de enfermagem em seu interior de origem.

Minha mãe - que dava a senha do cartão de crédito para Claudinha  comprar manga e melancia toda manhã - não lamentou.

Ficou feliz por ela.

Nunca mais a vi.

Seu Luís, eu soube, se aposentou em paz.

Eram dois escravos.

Que somente nos governos do PT encontraram oportunidades de abandonar seus quartinhos fedendo a descaso e pouco descanso e seguirem em frente.

Antes de Dilma e Lula, essa gente nem seguro desemprego tinha.

Mas café e pão quentinho em minha mesa, e gentileza e atenção durante a execução do hino, sempre nos ofereceram.

Não é só por Seu Luís e por Claudinha que eu estou brigando com amigos e pensamentos dinossauros agora.

É pelos  filhos e netos deles.

É pelos meus filhos e meus netos.

É por ser contra essa gente cega.

Que acha que Claudinha e Seu Luís merecem viver apenas servindo beijú e biscoito e acompanhando execução de hino nacional.

Por ser contra esses bichos escrotos, com pança de mamute e espírito de porco, que acha que faculdade não é lugar de pobre e preto.

Por ser contra esses cabeças dinossauro, que estão fazendo o país andar pra trás, que comprei essa briga.

O Brasil precisa seguir em frente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário