A realidade se impõe: temos de aprender a viver numa sociedade regida pelo dedo-durismo.
Mais que o presidente da República, mais que qualquer um que se julgue autoridade, o poder real está com o alcaguete, que até outro dia era uma figura execrável, repudiada por todos - e até mesmo pela marginalidade.
"Fecharam o paletó do dedo duro/ Pra nunca mais apontar
A lei do morro é barra pesada/ Vacilou levou rajada na ideia de pensar (Bis)
A lei do morro é ver ouvir e calar/ Ele sabia, quem mandou ele falar
Falou demais e por isso ele dançou/ Favela quando é favela, não deixa morar delator"
Assim cantou Bezerra da Silva ("Dedo Duro"), num dos inúmeros sambas que gravou abordando esse detestável personagem.
E Bezerra sabia das coisas da malandragem e do povo, conhecia a alma profunda das periferias.
Hoje, para espanto quase geral, o delator é aclamado como herói, não importa se ele, antes de ser um X-9, era um ladrão que passou a vida toda roubando os cofres públicos, corrupto ou corruptor, e que para se livrar da cana pesada, entregou os comparsas, ou pior, falou aquilo que a meganhagem, suas excelências, os doutores - seja lá quem for -, queriam que ele falasse.
Apodrecendo numa prisão imunda, sem ter sido julgado, sem perspectiva de ser libertado, com seus carcereiros todos os dias passando a ele o roteiro do que deve dizer para o "meritíssimo", o sujeito entrega a própria mãe, é capaz de dizer que fulano de tal incendiou Roma ou que sicrano bolou o plano de derrubada das Torres Gêmeas.
Da mesma forma, são poucos os que resistem a uma oferta de ver sua pena de 40 anos de prisão ser reduzida a uns dois, três anos, para serem cumpridos em sua mansão, com o único inconveniente de ter de usar um aparelho eletrônico em seu tornozelo, se disserem que beltrano, apesar de sua aparência de coroinha de missa dominical, é na verdade um vilão mais terrível que o professor Moriarty dos livros de Sherlock Holmes.
Afinal, nestes tempos de Brasil Novo, palavra de cagueta é lei.
Há uma fila de candidatos a Silvério dos Reis ou Judas Iscariotes.
Portanto, todos nós devemos ter muito cuidado com tudo o que fizermos no dia a dia, mesmo as coisas mais triviais.
Se for atravessar uma rua, dê preferência aos carros.
Trate os policiais como se fossem a encarnação dos reis Luíses da França.
Não ria nem fale alto em locais públicos.
Não dirija devagar nas estradas e sempre ultrapasse na contramão na faixa contínua.
Em resumo: não chame a atenção, seja anônimo, não se destaque em nada, não tenha opinião sobre coisa nenhuma e, se for forçado a dar algum palpite, que seja o mais idiota possível, revelador de sua notável ignorância e mediocridade.
Lembre-se sempre: em cada esquina, em cada canto, em cada mesa do bar, do restaurante, do trabalho, atrás de cada porta, num banco da praça, ou no volante do carro que parou ao lado do seu no semáforo, pode estar um dedo-duro.
E, a apoiá-lo em suas delações, a transformá-las em "colaborações" para o bem da Justiça, para o combate do câncer da corrupção, para a salvação do país, está um doutor daqueles tão distintos e bem apessoados que dá a impressão que suas camisas e seu terno foram comprados em Miami, coisa fina, nada comparável a qualquer um desses tantos que se veem por aí em lojas de shopping centers.
Delatores e doutores, um time imbatível!
Com eles, não há perigo de a saúva acabar com o Brasil.
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