A farsa do "antipetismo", por Fernando Horta

A ciência está cheia de conceitos malformados, mal pensados ou mesmo insustentáveis. Ocorre que até para propor um conceito (ou questioná-lo) é preciso alguma empiria e muito cuidado metodológico.
Nenhuma das duas coisas acontece com a ideia do “antipetismo”. Segundo esta noção, existiria na sociedade um sentimento de “aversão” arraigado com relação ao Partido dos Trabalhadores que transcende a lógica e faria com que as pessoas votassem em qualquer coisa (ou coiso) menos no PT.
É uma noção largamente difundida na nossa sociedade, desde jornalistas até catedráticos de ciência política e história repetem esta noção, mais ou menos nos mesmos termos. Isto, por si só, já seria indício de problema. As posições mais contestáveis, do ponto de vista científico, sempre estiveram entre as mais plasmadas na sociedade. Como uma verdade imanente contra a qual quem se insurge é “louco”, “incoerente” ou ainda “desonesto”.
Poucas noções, contudo, estão mais equivocadas do que a do “antipetismo”.
Se expressarmos esta noção de forma mais limpa e lógica poderemos testá-la. Assim, o antipetismo seria a resultante de três afirmativas:

  • 1) Que existe uma aversão ao PT e não a outros partidos.
  • 2) Que esta aversão faria com que os candidatos do PT e não de outras agremiações fossem prejudicados ou mesmo impedidos nos pleitos. E
  • 3) Que esta aversão estaria no campo do irracional imediato, no sentido de impedir aos sujeitos o cálculo racional da relação custo-benefício que rege, em diversos modelos, o posicionamento político.
Claro que vamos assumir que todos os condicionantes laterais são existentes. Assim, vamos assumir que os sujeitos têm acesso à toda informação de que precisam, que esta informação não é distorcida e nem politicamente induzida, e que eles podem compreender perfeitamente tanto a informação que recebem, quanto suas consequências. Fazendo isto, aumentamos a chance de uma análise objetiva, uma vez que damos à tese do antipetismo uma consistência que, inclusive, originariamente ela não tem.
Entretanto, se, com todos estes reforços, a tese não puder ser verificada na empiria é porque, provavelmente, ela está errada.
Vamos olhar então o nosso conjunto universo. Se tomarmos a República Brasileira, desde a criação do PT (1982) e olharmos os presidentes eleitos, temos: Figueiredo (até 1985), Tancredo Neves (não tomou posse), José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco, Fernando Henrique (dois mandatos), Lula (dois mandatos), Dilma (reeleita) e Temer. Se excluirmos todos os que não tiveram votação direta (e não se poderia medir o “antipetismo”) sobram apenas Collor, FHC, Lula e Dilma. Em termos de mandatos, são 4 mandatos petistas e 3 de outros partidos. 
Nossa análise aqui não encontra respaldo para a tese do antipetismo. Tomando-se eleições diretas, o PT venceu quatro e perdeu três. E as que foram perdidas não resultaram em presidentes do espectro da “esquerda” para que nos ajudasse a separar o “antipetismo” da oposição das elites a outros partidos de esquerda, por exemplo.
Não pode existir “antipetismo” antes da existência do PT. Assim, o marco temporal é importante. Isto porque se antes do surgimento do PT existir uma rejeição semelhante, é possível que o que erroneamente se chama de “antipetismo” seja, na realidade, uma oposição política em função da luta de classes. E que ilumina o PT nos dias de hoje simplesmente porque é este partido que na atualidade lidera as votações em favor da classe trabalhadora.
Se olharmos os presidentes do Brasil desde a República (1889), temos que são 37 contando, mesmo à contragosto, com Temer. Destes, apenas quatro (Vargas de 51 a 54, João Goulart, que foi eleito separadamente como vice, de 61 a 64, Lula de 2003 a 2010 e Dilma de 2011 a 2016.) estão no que pode se chamar generosamente de “esquerda”. Quatro presidentes em 37 é uma amostra muito pequena para encontrarmos o “antipetismo”, especialmente quando se sabe que s oposições aos outros dois presidentes (50% da amostra) foram tão ou mais violentas que ao PT, levando um ao suicídio e outro a sofrer um golpe de Estado sangrento. 
Assim, vemos que a luta de classes gera uma aversão à esquerda no Brasil muito antes do surgimento do PT. E se contarmos que apenas Lula e Dilma se reelegeram, então é possível dizer-se que APESAR da violenta oposição de classes no Brasil foi somente o PT quem conseguiu sobrepujar este ódio e triunfar. O argumento inverte-se de um “antipetismo” sem base empírica, para um antagonismo de classes com história e exemplos anteriores que é subvertido pela força de um único partido de esquerda no Brasil.
Contudo, vamos oferecer à tese do “antipetismo”, mais dois testes. O primeiro é a verificação da racionalidade do cálculo custo-benefício para o surgimento do “antipetismo”. Aos espectros políticos da direita e centro direita o PT é visto como “esquerda” e é ilusório imaginar que em um cenário com opções à direita o “antipetismo” vai ser a força principal de decisão do voto. Nestes setores, portanto, é desnecessário e sem sentido falar em “antipetismo”, eles votariam na direita contra qualquer candidato que se colocasse na posição de antagonista. Sendo petista ou não.
É preciso testar a tese do “antipetismo” no único lugar em que ela poderia ser efetivamente vista: na centro esquerda e esquerda não petistas. Ora, é nestes grupos que só pode ser visto o “antipetismo”. É neste cenário que a relação custo-benefício deveria aparecer politicamente e indicar o voto no PT, mas, por outras razões, não se materializa. E aqui a virada do primeiro para o segundo turno nos indica um excelente laboratório.
Na eleição de 2002 de Lula, ele havia recebido no primeiro turno, segundo o TSE 46,44% dos votos com José Serra recebendo 23,19%, Garotinho 17,86%, Ciro Gomes 11,97% (!), José Maria (PSTU) 0,47% e Rui Costa Pimenta 0,04%. Vamos imaginar que a esquerda não petista não votou em Lula no primeiro turno e é do tamanho da diferença entre as votações do primeiro e do segundo turno. Lula teve 61,27% dos votos no segundo turno, contra 38,72% de Serra. Uma diferença de 14,83% que foram agregados ao PT. Assim, este antipetismo deve estar no acréscimo de votos que Serra teve do primeiro para o segundo turno mais o aumento dos brancos e nulos.
Não é crível dizer-se que Lula recebeu voto de “antipetistas” (especialmente em sua primeira eleição vitoriosa). Se os votos foram para Lula, e Lula é claramente identificado com o PT, isto quer dizer que o efeito não era um “antipetismo” (caracterizado pela irracionalidade do cálculo custo-benefício político), mas uma mera objeção de voto que pode ser contornada com informação e convencimento.
Seguindo esta linha, Serra teve 19,7 milhões de votos no primeiro turno e 33,3 milhões de votos no segundo. A diferença seria de 13,6 milhões de votos. Os votos brancos e nulos tiveram diminuição do primeiro para o segundo turno: Brancos diminuíram em 1,1 milhão e os nulos em 3,2 milhões. Já as abstenções subiram 3.1 milhões.
Isto significa que, na hipótese mais favorável à tese do antipetismo, o tamanho dele é dado por: 13,6 milhões (acréscimo votos do Serra) – 1,1 milhão (soma da diferença dos votos em brancos) – 3,2 milhões (soma da diferença dos votos nulos) + 3,1 milhões (aumento das abstenções. O resultado seria de 12,4 milhões, se (e somente se) estes votos tivessem sido dados a candidatos de esquerda no primeiro turno. A regra de restrição é que o antipetismo só tem sentido se avaliado dentro da esquerda e centro esquerda.
Vamos assumir um erro ideológico. Dizer que TODOS os candidatos opositores a Lula e José Serra eram de esquerda. É um erro, pois Garotinho do PSB e Ciro Gomes naquela época no PPS não eram vistos exatamente desta maneira. Mesmo assim, se somados os valores do primeiro turno deles, temos 25,7 milhões de votos. Deste total apenas 12,4 milhões de votos não chegaram a Lula. 
O total de votantes daquela eleição foi de 115,2 milhões de votantes e apenas 12,4 milhões representam o “antipetismo” teórico. Apenas 10,7% dos votos, portanto.
Usando a mesma metodologia para as outras eleições temos o seguinte gráfico:
Lembrando que em 2006 Geraldo Alckmin teve mais dois milhões de votos a menos no segundo turno do que fizera no primeiro turno, e que em 2010 e 2014 Marina Silva não deveria ser considerada candidata de “esquerda” (tanto por seu programa, quanto por seus apoios no segundo turno).
E este é o gráfico santificado pelos que atacam o PT hoje. Ele supostamente mostra que candidatos do partido teriam algo entre 10 e 11% (média) de oposição imediata apenas por ser do partido. 
Este gráfico é a expressão ajudada do conceito de antipetismo, tomado com suas condicionantes em máximo desabono da tese contrária. Entretanto, ele tem cinco graves erros:
1) O gráfico assume que todos os não votam no PT ou em seu principal antagonista no primeiro turno são “de esquerda” e teriam sua decisão de voto estabelecida única e exclusivamente na noção de “antipetismo”. Como se a esquerda fosse majoritária no país e este efeito político só não se realizasse no âmbito eleitoral pelo efeito da aversão ao PT. Esta noção é errada e isto pode ser percebido por meio das votações no legislativo, em que os partidos de esquerda nunca conseguiram somar 30% das cadeiras.
2) O gráfico esquece a competência, a campanha e os investimentos dos candidatos opositores ao PT no segundo turno para ganharem votos na disputa eleitoral. Assumindo que todo o voto no opositor do PT é dado pela aversão e não pelas boas propostas, carisma e retórica do candidato.
3) O gráfico admite que todas as pessoas que anularam votos, votaram em branco ou não compareceram às eleições – na diferença entre os números do primeiro para o segundo turno – o fazem como expressão do “antipetismo” e não por quaisquer outros motivos.
4) O gráfico se perde na falta de historicidade. Parece que nunca existiu, no Brasil, qualquer oposição às esquerdas até o surgimento do PT. Esta noção é errada historicamente e inconsistente nos dias atuais, haja vista que não temos nenhum candidato de esquerda não petista que tenha conseguido ir ao segundo turno.
5) O gráfico desconsidera a própria natureza do segundo turno que é jogar “todos contra um” e forçar um processo de decisão eleitoral. O efeito nominado como “antipetismo” pode ser uma simples consequência do sistema de votação no Brasil.
Fica um pouco prejudicada a avaliação da última possibilidade (que o antipetismo seja uma consequência da própria existência do segundo turno), uma vez que as eleições anteriores foram vencidas ainda no primeiro turno. A eleição de 1998 fica fora porque Fernando Henrique venceu no primeiro turno com 53% dos votos, com Lula tendo 31,7% e Ciro gomes 10,9%. E a de 1994, pelo mesmo motivo, com Fernando Henrique tendo 54,2% dos votos, Lula 27% e Enéas Carneiro 7,3%.
Em 1990, pode-se aplicar a mesma metodologia já que houve segundo turno. Ali, o número que caracteriza o “anticollor” (diferença entre os votos do segundo colocado mais diferença de brancos, nulos e abstenções no segundo turno em percentual de votantes) é 27,7%. Muito acima de qualquer valor mostrado anteriormente com relação ao PT.
Assim, o chamado “antipetismo” é um nome oportunista dado a uma série de efeitos diferentes, erroneamente aglutinados numa coisa só, e que, mesmo em sua expressão teórica mais favorável, não encontra sustentação empírica. O que hoje se chama de “antipetismo” é a soma do vetor de rejeição eleitoral da própria luta de classes no Brasil, da incapacidade dos candidatos derrotados no primeiro turno de buscarem os votos necessários para irem adiante e da capacidade dos candidatos que passam ao segundo turno de convencerem – por suas propostas e capacidades pessoais – eleitores a sustentarem o seu projeto.
Tudo isto entra na conceituação imprecisa de “antipetismo”. Ainda, existe a questão de que o sistema eleitoral brasileiro cria – por decisão estratégica – a ideia do “todos contra um” no segundo turno. No caso da eleição do Collor, por exemplo, este sistema foi um gerador ainda maior de animosidade, e nada ali tinha a ver com o “antipetismo”.
Se tomarmos os números apontados pela hipótese teórica perfeita, de um “antipetismo” na casa de 10 a 11% em média, como válidos (desconsiderando todas as premissas erradas), ainda assim o antipetismo não tem o efeito “bicho-papão” que alguns apregoam. Estabelece que o candidato do PT tem um teto de votos de 88-90%, mas já sai de um mínimo de 21 ou 22% conforme mostra a história. E, não esqueçamos, nos últimos quatro segundos turnos, os candidatos petistas (mesmo com o suposto antipetismo) ganharam as eleições.
Há, entretanto, uma notícia boa. Se, num eventual segundo turno entre Haddad e Bolsonaro aplicarmos a mesma lógica e os mesmos números, e adicionarmos 10% de votos ao percentual de Bolsonaro (por conta do “antipetismo”) ainda há por lutar 59% dos eleitores, dos quais 21% (segundo a última pesquisa IBGE) já votam no PT. Na pior das hipóteses existem 38% de votos a serem conquistados para se vencer o fascismo.
E vamos vencer!

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