Ao realizarem, domingo (11/11), pelo 36º ano consecutivo, a Caminhada pelas Almas da Barragem do Patu, moradores de Senador Pompeu (cidade no semiárido do Ceará, distante 273 quilômetros de Fortaleza) mantiveram a tradição de não deixar cair no esquecimento as milhares de mortes de flagelados ocorridas entre 1932/1933 em um campo de concentração. Instaurado na cidade, o campo tinha o objetivo de impedir que as vítimas da seca de então chegassem a Fortaleza. Serviu como "barreira de higienização", tal como informamos em "Campos de concentração" cearenses precederam aos de Hitler.
A tradicional Caminhada pelas Almas do Açude foi criada em 1982 pelo padre italiano Albino Donatti, na sua passagem por Senador Pompeu (1980/1995). Ele e a coordenadora do Centro de Defesa dos Direitos Humanos Antônio Conselheiro (CDDH-AC), Marta Sousa, perceberam que os fiéis encomendavam missas pelas almas do Açude de Patu.
Ao se debruçarem sobre o assunto descobriram a história dos sete "campos de concentração" instaurados no Ceará durante a seca de 1932. Um dos maiores foi o de Senador Pompeu, junto à então paralisada obra de construção do Açude do Patu. Para ajudar a manter a lembrança do que ali ocorreu, deram início às Caminhadas pelas Almas, sempre no segundo domingo de novembro.
Foi uma iniciativa independente, mantida graças à religiosidade do povo do sertão cearense e do apoio da Igreja Católica. Há seis anos, ao assumir a paróquia de Nossa Senhora das Dores, em Senador Pompeu, o padre João Melo dos Reis tratou de incluir a também conhecida como "Caminhada da Seca" no calendário oficial da Diocese. Até então era uma atividade da paróquia, muito embora atraísse fiéis e populares de diversas cidades da região. Por sua vez, em 2016, ao ser empossado bispo da diocese de Iguatu – que abrange Senador Pompeu – dom Edson de Castro Homem incorporou-se à manifestação, participando, como ocorreu domingo, das Caminhadas.
Nesta 36ª versão, pela primeira vez o evento contou com ajuda do Governo do Estado do Ceará. Foi uma ajuda importante na montagem de um palco muito bem estruturado onde dom Edson realizou a missa na frente do cemitério simbólico que a Igreja construiu no local. Nos anos anteriores, a missa era oficiada na boleia de um caminhão, sem qualquer proteção do sol.
A ajuda, portanto, foi indireta. Como sempre ocorreu nesses 36 anos, não houve a participação de qualquer representante do governo. Apenas o prefeito da cidade, Antônio Maurício Pinheiro Jucá (PDT), marcou presença.
Curiosamente, a existência destes "campos de concentração" no Ceará, embora comentada por muitos e estudadas por alguns, jamais mereceu uma atenção específica de qualquer órgão governamental, municipal, estadual ou federal.
Há relatos, estudos e até citações em livros, mas não existe nenhum tipo de levantamento aprofundando o assunto. Tal como o que foi feito pelas Comissões da Verdade – nacional, estaduais, municipais e setorizadas – sobre as atrocidades da ditadura civil-militar de 1964.
Iniciativas pessoais, como a do advogado/historiador Valdecy Alves, têm permitido o resgate de documentos, como as fotos ao lado que copiou de um livro encontrado no Departamento Nacional de Obras Contra a Seca (DNOCS). Por sua vontade, já o teria digitalizado o livro, mas não o permitiram. Nele encontrou registros fotográficos de 1933 dos campos de concentração do Patu (Senador Pompeu), de Buriti (Crato) e Urubu-Pirambu (Fortaleza).
Como estes muitos documentos estão espalhados sem que haja a iniciativa de arrecadá-los em um único local, como forma de resgatar a História que retratam. Falta a criação, por exemplo, algum centro cultural e/ou memorial para juntar, arquivar e permitir estudos mais detalhados das informações sobre a iniciativa da criação dos "currais" que segregaram os flagelados daquela e de outras secas.
Em especial sobre o ocorrido no Ceará entre 1932/33 quando, como relatamos, calcula-se que morreram mais de 70 mil flagelados, em seis áreas de confinamento: 6.507, em Ipu; 1.800, em Fortaleza; 4.542, em Quixeramobim; 16.221, em Senador Pompeu; 28.648, em Cariús e 16.200 no Crato.
Um trabalho que também recolha e consolide os depoimentos já existentes, e novos que ainda podem ser tomados, dos sobreviventes destes campos e/ou de seus descendentes. O que ainda vivem, já beiram ou ultrapassam os 90 anos. Trata-se de algo ainda possível de ser feito, mas não por muito tempo.
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