O enforcamento de Dom Quixote na Avenida Paulista, por Sebastião Nunes

Os tambores rufaram quando Dom Quixote parou diante do cadafalso, armado em frente ao edifício do Itaú Cultural. Magro como uma vassoura, o Cavaleiro da Triste Figura vestia o camisolão branco dos condenados, tinha os pés descalços e as mãos amarradas nas costas.

Na entrada do prédio, 170 artistas (poetas, romancistas, músicos, pintores, escultores, cantores e performers, entre outros) aglomeravam-se em respeitoso silêncio. Entre eles, vários nomes conhecidos, alguns de muito sucesso na televisão.

Nas janelas dos andares superiores, também convidados especialmente para a cerimônia, debruçavam-se ministros, juízes de instâncias superiores, procuradores, deputados federais, senadores, agiotas-banqueiros e operadores de bolsas de valores.



Diante do cadafalso, 666 meninas vestidas de rosa e saias abaixo do joelho empunhavam bíblias e agitavam bandeirinhas do Brasil. Imediatamente atrás delas, 666 meninos vestidos de azul suavam carregando fuzis, submetralhadores e escopetas.

Fora das correntes de isolamento, controladas por soldados armados, enorme multidão de basbaques se acotovelava ansiosa e fremente.

Dom Quixote olhou para cima e seu proeminente gogó subiu e desceu. Olhou para a direita, e lá estava Sancho Pança, seu fiel escudeiro, também de mãos amarradas nas costas, suando como um peba. Olhou para a esquerda – e quem era que estava lá?

Antes que abrisse a boca de susto, viu que se aproximava velozmente um blindado do exército, do qual desceu um Juiz-Togado-de-Alto-Coturno, paramentado que nem um agente funerário, que desceu solene, ladeado por dois praças armados, caminhou sem pressa e parou diante do cadafalso.

A CÉSAR O QUE É DE CÉSAR

– Digníssimos senhores ministros e jurisconsultos, nobilíssimos deputados e senadores, distintíssimos senhores banqueiros e financistas, caros artistas convidados, meninos e meninas, senhores e senhoras – principiou ele o Discurso de Condenação, depois de tirar do bolso algumas folha de papel amassado. – Estamos reunidos para dar seguimento à limpeza que o governo iniciou recentemente, e que hoje contempla um dos mais notórios e perversos inimigos da pátria: Dom Quixote.

Sancho, que ouvia com interesse o discurso, não gostou nem um pouco. Então ele não era ninguém? Não era a ele que o Cavaleiro da Triste Figura recorria em busca de conselhos, dicas e sugestões? Por que não era citado?

Irritado com a interrupção silenciosa de Sancho, o Juiz-Togado-de-Alto-Coturno olhou feio para o gorducho, pigarreou com força e continuou:

– Não satisfeito em conspurcar a mente de seus compatriotas há quatrocentos anos, teve esse infeliz a ousadia de, na Nova Ordem de Extrema Direita que se instalou no Brasil, destinada a uniformizar corações e mentes, teve a ousadia, repito, de tentar introduzir entre nossos jovens a maligna tentação do sonho, da fantasia e da esperança.

Aplausos prolongados.

– Obrigado – agradeceu ele, modestamente. – Nosso objetivo, como sabem, é extirpar para sempre essas perniciosas sementes. Nunca mais será permitido a artistas, negros, feministas, minorias e ativistas de movimentos sociais buscarem a diversidade, o direito de ser diferente e de pensar diferente. Pelo contrário: nosso objetivo é o da linearidade mais absoluta. Como prova, ali estão 170 artistas portadores da boa nova, criadores do Realismo Extremista Brasileiro, cujas obras são divulgadas apenas depois de análise rigorosa e minuciosa copidescagem.

Novos e delirantes aplausos, diante dos quais os 170 artistas integrantes do Realismo Extremista Brasileiro se curvaram em agradecimento.

À DIREITA, VOLVER!
– Como amostra – prosseguiu o eloquente orador –, o coral de crianças entoará o início do Hino Oficial da Uniformidade, também conhecido pela sigla HINOFU.

Não se sabe de onde, surgiu um maestro, cujas dragonas sugeriam um tenente do exército, que se pôs a frente da criançada, ergueu a batuta e comandou o coral.

Entoado por vozes estridentes e patrióticas, sobem aos ares os versos iniciais do HINOFU:

Duzentos milhões em delírio

Pra frente, Brasil, do meu coração...

Toda violência é um colírio

Que inunda meus olhos

De pura emoção!

De repente é aquela corrente pra frente

Parece que todo o Brasil

Perdeu a razão...

O entusiasmo foi geral e contagiante.

Do alto do Itaú Cultural começaram a chover moedas de 17 reais, cunhadas especialmente para a ocasião, que a multidão em êxtase disputou a socos e pontapés, resultando em 170 mortos e 1700 feridos que foram atendidos ali mesmo, antes da remoção dos defuntos para o necrotério e dos sobreviventes para o Pronto Socorro.
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