A cada dia a imprensa e as redes sociais divulgam um novo caso vergonhoso, sempre envolvendo algum filho ou familiar do presidente recém-eleito. A cada dia vem à tona alguma declaração de integrante de sua própria base criticando uma ou outra política ou decisão de ministros.
Na verdade, o que começa a se tornar cada vez mais evidente é a incapacidade de convivência harmoniosa entre algumas das partes que compõem o amplo leque de alianças que se formou em torno de Bolsonaro. A partir do momento em que sua candidatura deixou de ser apenas uma aventura improvável de um deputado militar reformado, com fama de excêntrico e saudosista da ditadura, o fato é que setores das elites empresariais passaram a jogar suas fichas também na possibilidade de que o mesmo chegasse ao Palácio do Planalto.
Superado o difícil desafio eleitoral, tem início uma outra etapa não menos complexa e recheada de armadilhas. Trata-se, a partir de então, de compor a equipe de governo e articular os espaços políticos para facilitar a sua vida no interior do Congresso Nacional. Além disso, o presidente necessita angariar apoios nos grandes meios de comunicação para tentar solidificar sua imagem junto à chamada opinião pública. O tempo escorre entre seus dedos e o suposto cacife um governante recém empossado com algumas dezenas de milhões de votos parece não ter mais efeito. A legitimidade que parecia disponível e fresquinha começa a enfrentar um processo de corrosão acelerada.
Por outro lado, Bolsonaro precisa urgentemente se firmar aos olhos da comunidade econômica e financeira internacional. Afinal, ele tem uma grande tarefa pela frente: tentar convencer as elites da diplomacia de todos os continentes e dos negócios globais de que essa imagem de “tosco” que carrega consigo não passa de uma manobra dos defensores do marxismo cultural. Assim, ao contrário do que tem sido divulgado pelas páginas da grande imprensa internacional, seu governo simbolizaria a vanguarda da modernidade do capitalismo contemporâneo. Afe! Missão quase impossível, em especial se estiver sob a responsabilidade de um chanceler completamente desmoralizado e desacreditado, como é o caso de Ernesto Araújo.
Ora, face a uma conjuntura interna tão atabalhoada como essa do começo de seu governo, caiu-lhe no colo uma oportunidade única. Refiro-me à participação na reunião anual do Fórum Econômico Mundial em Davos na Suíça. Esse evento costumava promover o encontro da nata dos dirigentes do capitalismo financeiro global. Tanto por meio dos dirigentes políticos das principais nações do mundo, como pela presença dos mais importantes representantes das grandes corporações empresariais espalhadas pelo globo. Na edição de 2019, no entanto, as dificuldades impostas pela figura de Trump e suas excentricidades nas relações internacionais retiraram a importância e o brilho do evento. Em face da ausência das principais lideranças que tradicionalmente comparecem ao conclave, surgiu a possibilidade para que o representante do Brasil ocupasse o protagonismo da cena. Uma chance de ouro.
Mas ele não tinha nada a dizer. Um discurso fraco, mequetrefe e rastaquera. Não disse ao que veio. Nem mesmo para o público que aguardava algum recado relevante na pauta conservadora do liberalismo econômico internacional. Não gastou mais do que longos 8 minutos para deixar claro que não sabia bem o que estava fazendo por ali. Nem mesmo da ótica de seu grupo de apoio interno conseguiu passar alguma mensagem. Quanto às expectativas do financismo, Bolsonaro não avançou mais do que um agradecimento pela oportunidade oferecida, com a relevante menção explícita a seu bordão “Deus acima de tudo”. Mencionou o que considerava como as importantes presenças dos ministros Sérgio Moro, Ernesto Araújo e Paulo Guedes.
Ele fugiu como pode das coletivas “incômodas” da imprensa estrangeira e ainda destacou em sua breve fala na abertura,com orgulho digno de dar vergonha alheia, aquilo que considerava fundamental oferecer ao mundo dos negócios como sendo as qualidades mais relevantes de nosso país:
“Vamos investir pesado na segurança para que vocês nos visitem com suas famílias, pois somos um dos primeiros países em belezas naturais, mas não estamos entre os 40 destinos turísticos mais visitados do mundo. Conheçam a nossa Amazônia, nossas praias, nossas cidades e nosso Pantanal. O Brasil é um paraíso, mas ainda é pouco conhecido!”
O fato concreto é que a passagem de Bolsonaro por Davos revelou-se como um verdadeiro fiasco. É sabido que o modelo do conservadorismo ortodoxo de Paulo Guedes não vai promover nenhuma retomada sustentável do crescimento da economia. Trata-se tão somente de uma chegada ao poder para completar o processo de desmonte iniciado por Meirelles & Cia no governo Temer. Não é por acaso que os principais itens de agenda são o aprofundamento do ajuste fiscal restritivo, a privatização e a reforma previdenciária. Esses são, aliás, os únicos elos que ainda mantêm alguma sintonia entre o novo governo e as elites empresariais e políticas. No máximo, ambicionam a algum voo de galinha. Um ciclo de crescimento de curto prazo, sem tocar na desgraça da desindustrialização, nos efeitos da maior recessão de nossa História e muito menos no estoque de 13 milhões de desempregados.
Ora, sob tais circunstâncias, a possibilidade de obter alguma elevação razoável no PIB depende daquilo que o economês chama de “saída pelo setor externo”. Promover aumentos nas exportações e internalizar esses recursos vindos do exterior para promover algum tipo de engate nas atividades econômicas internas. Esse é o caso típico dos arranjos econômicos em torno do agronegócio (soja, trigo, álcool, carnes, sucos de frutas e outros) e das atividades de exploração de produtos minerais (ferro, petróleo e outros). A atividade exportadora tem esse condão de se agarrar no produto a ser vendido lá fora para romper a inércia interna.
Saída pelo setor externo?
No entanto, concordando-se ou não com essa alternativa, nem mesmo essa saída de reforço do modelo neocolonial de exportação de produtos primários ou de baixo valor agregado é capaz de dar certo. Caso se mantenha essa postura doutrinarista de inspiração medieval de seu chanceler e dos ideólogos do bolsonarismo, o mais provável é de se assistir ao aprofundamento da tendência de isolamento diplomático e comercial do Brasil.
A insistência em transferir a embaixada brasileira para Jerusalém pode causar sérios estragos na imagem da reconhecida tradição diplomática do Itamaraty. Além disso, os prejuízos econômicos serão graves e imediatos. Os principais compradores de nossa carne, por exemplo, são os países de cultura islâmica. E já teve início um processo de retaliação comercial associada a essa aventura irresponsável. Veremos até onde resiste o compromisso ideológico do agronegócio com o projeto político do capitão e os resultados de faturamento das empresas integrantes do complexo da carne.
As relações diplomáticas e comerciais com a China são outro capítulo da mesma temporada da série “Trapalhadas de Araújo e Carvalho”. Impulsionados pelo discurso obscurantista do anticomunismo, do antissocialismo, do antitudismo de sua base extremista, os grupos que chegaram a Brasília estão passando pelo inevitável banho de realidade e de pragmatismo na política. As conhecidas fustigadas ao modelo chinês agora devem der espaço ao estabelecimento de relações “amistosas” com o gigante do mundo econômico contemporâneo. Mas isso não é tranquilo nem pacífico no interior de quem se elegeu na crítica veemente ao que chamava de vermelhismo das gestões do PT e ao emcimadomurismo do próprio período tucano. Mas o fato é que o próprio responsável pela Câmara de Comércio Brasil China deixa bem claro o incômodo dos nosso principais parceiros.
"A China só investe onde é bem-vinda. O Brasil precisa desses investimentos e deve ter muito cuidado, se isso continuar o país vai sofrer”
Na outra ponta, são também bastante conhecidas as desavenças dos principais exportadores de nossos produtos manufaturados para o Mercosul com o discurso do novo responsável pelas relações exteriores. No comércio regional encontra-se um dos poucos espaços onde nossa pauta comercial é superavitária em produtos de maior valor agregado - em especial a venda de veículos brasileiros para Argentina. A insistência do chanceler Araújo em desmoralizar o Mercosul como alternativa diplomática e econômica também vai provocar consequências danosas para um ramo importante de nossa cadeia industrial.
Enfim, a cada novo dia, fica evidente a impossibilidade de convivência pacífica entre essas duas agendas. O conservadorismo liberal de Guedes depende da superação do doutrinarismo medieval de Araújo. Essa tensão deverá manter o imobilismo na retomada dos investimentos e do crescimento. Aguardemos, pois, como será o posicionamento do General Mourão. Em algum momento o capitão será chamado a se manifestar.
Paulo Kliass - Doutor em Economia pela Universidade de Paris. Fez Mestrado na Universidade de São Paulo e Graduado em Políticas Públicas e Gestão Governamental pela Fundação Getulio Vargas
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