Caiu na rede: Eu apertaria o gatilho

Meu pai foi demitido em 1998. Pouco tempo depois, minha mãe, costureira, abriu uma lojinha de roupas na frente de casa. Ela cuidava da casa, cuidava de mim, pagava as contas, pensava em tudo. Costurava, tirava medidas, atendia, comprava tecidos, cortava peças até altas horas.

Meu pai nunca mais trabalhou. Ajudou minha mãe com as burocracias para abrir empresa, fez o que pôde. A depressão bateu - eu cresci com um pai deprimido, talvez isso explique muita coisa - e o casamento não ia mais tão bem. Desde jovem meu pai bebia, mas aí começou a beber mais.

Meu pai, o Carlos, começou a ficar o dia todo no bar. Era feliz ali, entre garrafas e amigos. Deixa eu explicar uma coisa: o Carlos tinha um cargo de gerência numa empresa que fazia garrafas PET. "Numa" empresa não, "na" empresa. Foi a empresa que trouxe o modelo PET para o Brasil. Meu pai era um homem inteligente, cheiroso, culto, viajou o mundo a trabalho. Me apresentou os Beatles.

Eu lembro dos perfumes que meu pai usava. Do bigode e das jaquetas de frio. Dos dentes tortos, do barulho que fazia almoçando, dos olhos meio verdes meio mel, do cheiro de pimenta no prato. Lembro de ganhar chiclete quando ele chegava, e de catar moedas no vão da poltrona onde ele sentava para tirar o sapato. Da mancha vermelha e quadrada no peito, do cenho sisudo.

A fábrica de garrafa foi à merda. O empresário, de uma das famílias mais ricas do estado de São Paulo, devia rios à previdência. Fez descontos indevidos na folha dos empregados. O Carlos, já perto dos cinquenta, saiu de lá com valores a receber. Perdeu o emprego no fim dos anos 1990, quase velho, esperando o patrão acertar o que devia. O Carlos e mais a torcida do Flamengo. Processo coletivo.

Volta a fita. Meu pai começou a quase morar no bar e virou uma chaminé de cigarros Free. Cresci na fumaça e vi o pai adoecer. Só quem teve parente com câncer sabe o que eu digo aqui. Quimioterapia, careca, cansado, apetite, náusea, pacote completo. Pulmão fodido, pigarro, noites sem dormir. Antes da loja da mãe engatar, dívida no banco, banco ligando, pressão daqui, pressão de cá, mais depressão.

Para de fumar, Carlos. Não dá.

Meu pai morreu antes de morrer. Primeiro cadeira de rodas, sem oxigenação para conseguir ficar em pé. Depois a parada respiratória, já amarelo. Eu tenho uma dor profunda de não ter conversado mais com ele. A última interação que tive com meu pai foi levar um copo de suco de pêssego, rejeitado pela náusea. "Obrigado". Última palavra. Hospital, interna, coma, morre. Minha mãe viu, eu não. 2004.

Depois o velório, o primeiro sério da minha vida. Pai pálido, florzinha, caralho a quatro. Mordi a língua e não chorei. A tia veio: "nessas horas, até pedra chora". E ali mesmo virei pedra, porque sim, porque é o que deu pra fazer, porque não dá pra exigir nada diferente de quem tá começando a vida. Nos anos seguintes, sabem quantas vezes eu quis abrir a cabeça de pessoas que pediram pra eu me abrir mais? Fui fazer terapia só aos vinte e quatro. Ainda me abro pouco.

Volta pra fábrica de PET. O processo trabalhista se arrastou. A justiça vendeu bens do empresário, e isso demora pra tramitar. Vai pra lá, vem pra cá, juiz libera, advogada pede isso, pede aquilo. Visualiza: o empresário é um velho, playboy, ricaço, mansão em outro país, fazenda, quadro caro na parede, amigo da família Marinho. Ainda tá vivo.

Nós, a família - eu, meu irmão, minha irmã, minha mãe - recebemos o dinheiro agora. Em 2019. Quinze anos depois do meu pai morrer. Vinte e um anos depois dele perder o emprego. O apelido do empresário era "o senhor das festas", sabia? Vinha até atriz. Vinha primo do Collor. Eu acho que teve festas mais caras que o valor devido ao meu pai.

Fico me perguntando o que teria sido do Carlos se tivesse recebido o dinheiro antes de ficar doente.

Justiça trabalhista.

Eu lembro que meu pai tinha um revólver e chegou a pensar em suicídio. Lembro dele contando para alguém que pensou em se jogar na frente de um caminhão.

Consciência de classe.

Eu sou filho de um homem, de um trabalhador especializado, de um humilhado pelo neoliberalismo, de um perseguido pelos bancos. E de uma mulher, cansada, moída, que destruiu a coluna ao longo de anos na máquina de costura, que nunca deixou faltar nada. Eu li, comi, comprei, estudei.

Eu sou filho do SUS e da escola pública.

E filho dos livros e dos sonhos que meu irmão contou.

Cresci pedra, mas querendo um mundo melhor e sem injustiça. Pelo patrão do meu pai, nenhum pingo de empatia. Um octagenário milionário que fez e faz do mundo um lugar pior. Eu apertaria o gatilho. Eu abriria o cadafalso. A morte dos canalhas, o ódio aos canalhas, a História.

Recebi a minha parte, que não é muito, com crise de choro e raiva. O pior dinheiro da minha vida. O preço da adega do Sr. Gilberto, menos. Talvez o que ele gasta em restaurantes. Vinte e um anos. Vinte e um. Vinte e um. Classe.

Carlos Ribeiro dos Santos, nascido a 15 de dezembro de 1949, ex-tenente do Exército Brasileiro, técnico em Química, formado em Administração de Empresas, fã dos Beatles, pai do Samuel, da Márcia e do Bruno. Descansou em outubro de 2004, sem ar.

O ódio aos canalhas. Sempre.

O amor aos nossos. Nunca esquecer.

Um comentário:

  1. Querido, o texto é de minha autoria e eu não gostaria que circulasse mais. É dolorido e não queria que saísse do controle. Se puder retirar, fico agradecido. Espero que compreenda.

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