Queo fazer mais um fuite en avant. Vou falar um pouco sobre a imensa oportunidade que se apresenta para o Brasil atuar a nível mundial a partir do próximo ano em diante. Isso levando em conta que vamos eleger Lula presidente pela terceira vez, provavelmente no primeiro turno.
Enorme mesmo? Às vezes, fico pensando se, na esperança ardente de vislumbrar uma recuperação do Brasil, não acabo superestimando o ex-presidente Lula ou subestimando as dificuldades que ele terá de enfrentar. Pode ser, mas não creio. A oportunidade não tem precedentes e decorre da conjugação de três fatores: a) um país que é um dos gigantes do mundo com b) um presidente experiente e respeitado mundialmente, c) em ambiente de escassez de lideranças políticas no mundo – lideranças que sejam não só fortes, como aceitas amplamente.
Se Lula fosse o grande líder de um país pequeno, como o uruguaio Pepe Mujica ou o timorense Xanana Gusmão, não teria, por maiores que fossem as suas qualidades, possibilidade de fazer grande diferença fora do seu país. Mas o Brasil é um continente em si mesmo – quinto maior país em extensão territorial, sexta maior população e oitava economia do mundo. Quando foi presidente entre 2003 e 2010, Lula demonstrou o grande impacto internacional que o Brasil pode ter.
Uma diferença em comparação com aquela época é a ausência de líderes de alcance mundial. No Ocidente, o quadro é desolador – Joe Biden, Boris Jonhson, Olaf Scholz, Emmanuel Macron não convencem. Depois que Angela Merkel pendurou as chuteiras, não apareceu ninguém à altura dela. Líderes fortes como Xi Jinping e Vladimir Putin, por outro lado, são vistos com desconfiança e rejeitados pelo Ocidente, principalmente o russo. Já Lula tem um perfil e uma trajetória que o tornam capaz de dialogar com todos.
Há uma circunstância especial que favorece ainda mais a atuação internacional do futuro governo. Por uma feliz coincidência (parece até encomenda), cabe ao Brasil exercer em 2024 tanto a presidência de turno do G-20 como a dos BRICS! Veja, leitor, que o timing é ideal. 2023 seria cedo demais. 2024 dá tempo para que o novo se organize para produzir grande impacto mundial – com repercussões políticas, diga-se de passagem, dentro do nosso país.
O G-20 reúne todos os principais integrantes do “Ocidente Político” (Estados Unidos, os principais europeus, a União Europeia, Canadá, Austrália, Japão, Coreia do Sul) e quase todos os principais emergentes (os cinco BRICS, Indonésia, Turquia, Arábia Saudita, México, Argentina). Nos anos recentes, e sobretudo agora em 2022, o G-20 enfrentou a sua fase mais difícil, em razão principalmente das desavenças cada vez mais intensas entre três dos seus integrantes: Estados Unidos, China e Rússia. Depois da invasão da Ucrânia, as divisões dentro do G20 se acentuaram, com os Estados Unidos, Canadá e o Reino Unido se recusando a participar de reuniões na presença da Rússia. Tentou-se até mesmo, sem sucesso, expulsar a Rússia do G-20.
Até 2024, é possível que o conflito Ocidente/Rússia perca alguma intensidade e pode até ser que o Brasil, atuando em conjunto com outros países como a China e a Turquia, exerça um papel pacificador. Mais provável, entretanto, é que o conflito não se resolva tão cedo, o que torna mais difícil a atuação eficaz do G-20.
Assim, cresce no lado ocidental a importância do G-7 (Estados Unidos, Alemanha, França, Reino Unido, Itália, Canadá e Japão) e a dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) no lado dos emergentes.
Sem puxar demais a brasa para a nossa sardinha, afirmo tranquilamente que os BRICS se ressentiram muito do declínio do Brasil nos governos Temer e Bolsonaro. Dou o meu testemunho de alguém que participou do processo BRICS desde o início, em 2008: nós, brasileiros, com a nossa criatividade, energia e entusiasmo, éramos, em muitos períodos, o principal motor do grupo. Agora podemos voltar a sê-lo, valendo-nos da oportunidade de presidir os BRICS em 2024.
Muito pode ser feito. Dou alguns exemplos. É fundamental revigorar as principais iniciativas financeiras dos BRICS: o fundo monetário (chamado de Arranjo Contingente de Reservas – ACR) e, principalmente, o banco de desenvolvimento (batizado de Novo Banco de Desenvolvimento – NBD). Tratei dos avanços e percalços do ACR e do NBD no meu livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém, em especial na segunda edição, e em livro publicado na Inglaterra no final de 2021, The BRICS and the financing mechanisms they created. Nesses dois livros, cobri as negociações entre os BRICS, de 2012 a 2014, e os primeiros cinco anos do ACR e do NBD, de 2015 a 2020.
Nesse primeiro quinquênio, alguma coisa foi alcançada no ACR e no NDB, ainda que com atraso e dificuldades. Desde então, infelizmente, não há indícios de que o ACR tenha feito progressos relevantes. Ainda não conseguiu, por exemplo, definir o local da sua sede ou unidade de monitoramento econômico. Pior é o caso do NBD, a mais importante iniciativa financeira dos BRICS. Sob a presidência, desde 2020, de um brasileiro medíocre, indicado pelo governo Bolsonaro, o banco parece estar andando para trás. Não consegue executar projetos importantes em quantidade expressiva, acumula problemas operacionais, demora enormemente a promover a entrada de novos países membros e pouco faz para substituir, nas suas operações, o dólar pelas moedas nacionais dos países membros. Os BRICS precisam, como se diz em inglês, take a long and hard look (lançar um olhar longo e duro) sobre o NBD e o ACR para preencher as lacunas e corrigir as distorções acumuladas nos últimos sete anos.
Além de retomar e retificar as iniciativas passadas, não não seria o caso de introduzir novos temas na cooperação econômica dos BRICS? O sistema monetário internacional está se tornando gravemente disfuncional. Perdeu-se há algum tempo qualquer pudor de usar o dólar, o euro e o sistema financeiro ocidental como armas em guerras econômicas, a maior e mais recente contra a Rússia, que teve cerca de metade de suas reservas internacionais congeladas. Não teria aumentado, assim, a importância de definir caminhos alternativos, que diminuam a dependência em relação ao dólar, ao euro e aos bancos americanos e europeus?
O mundo caminha para uma crescente fragmentação econômica, financeira e monetária, com hiperpolitização das moedas e das finanças. Rússia e China, por motivos óbvios, têm interesse urgente nessa questão.
A discussão do assunto já começou dentro dos BRICS. A Rússia propôs que se lance o projeto R5, assim denominado por causa da coincidência de as cinco moedas dos BRICS começarem com a letra R – real, rublo, rupia, renminbi e rand. Esse projeto poderia desembocar no aperfeiçoamento e multilateralização de acordos de pagamento em moedas nacionais, bypassando o dólar, com redução de riscos políticos e dos custos de transação. E poderia – quem sabe? – avançar para objetivos mais ambiciosos como a criação de uma nova moeda de reserva internacional, amparada na força das economias dos BRICS.
Na última reunião dos ministros de Finanças e presidentes de Banco Central do grupo, em 6 de junho, foi estabelecida a Rede de Think Tanks dos BRICS para Temas Financeiros. Talvez seja o canal apropriado para conduzir esse tipo discussão ao longo dos próximos anos.
Brasil, sob novo comando de 2023 em diante e presidindo os BRICS em 2024, pode dar um impulso decisivo a esses e outros temas de importância estratégica.
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