São inúmeros os casos desse tipo, mesmo de líderes não unanimemente reconhecidos como progressistas/humanistas, pelo menos na totalidade de suas carreiras públicas.
Assim, o Vargas progressista e popular dos anos 50 convive com a imagem de ditador sanguinário do Estado Novo; Gandhi paga por seu passado inevitavelmente manchado pelas singularidades sociais de sua casta em um país de extrema desigualdade; e inúmeros líderes, geralmente enquadrados como populistas, tem sobre si esse estigma de ambiguidade, de Médico e Monstro. Deixemos de lado líderes que, apesar de desfrutarem das mais altas honrarias e méritos, eram assumidamente conservadores, fascistas, racistas, xenófobos, enfim, tudo de ruim e desabonador que pode ser atribuído a uma figura pública, mas que se mantém nos panteões da humanidade, por terem vencido guerras e derrotado seus inimigos, e proporcionado prosperidade aos mesmos privilegiados de sempre. Churchill, por exemplo, e paro por aqui.
Lula 3 é uma incógnita. Está, pelo menos até agora, seguindo o roteiro de seus dois primeiros mandatos, bem-sucedidos os dois, feitas as contas e pesados os prós e contras. Muita coisa mudou, de lá para cá, e apostar na mesma receita, em ambiente bem diferente, pode ser um risco; mas não há muitas opções, não para um político conciliador. Quanto ao Haddad, merece, de fato, todos os elogios do Nassif. Mas me lembra, dolorosamente, de Darcy Ribeiro, perdendo a eleição para o governo do RJ para uma ameba política e mental, mas bem conhecido pela população, Moreira Franco, exemplo acabado de político tradicional brasileiro, que só fala o que as pessoas querem ouvir. Parafraseando um dito popular, ambos – Darcy e Haddad – são bons demais para fazerem parte da verdade política brasileira.
O preconceito contra Lula – o apedeuta – trabalha contra e a favor dele; se, por um lado, atrai para si o ódio das classes média e média alta, por outro atrai a simpatia do povo com quem compartilha a origem e a luta. Darcy e Haddad, instruídos, acadêmicos, passam desapercebidos às massas, e atraem apenas um ódio peculiar de seus pares sociais: aquele que é despertado por um sentimento de traição à própria classe. E, ao contrário da indiferença das massas, que fica restrita a elas mesmas e não se expressa de nenhuma forma, o ódio das classes média e média alta contra aqueles que julgam traidores se exprime fartamente, pela imprensa, pela cultura de massa, e pelas redes sociais que se preparam para monopolizar a comunicação e interação humanas, nos próximos anos, de forma sedutora e não coercitiva. Para qualquer pessoa sensata e desapaixonada, e independente dos resultados que seu terceiro mandato possa produzir, Lula, que graças a Deus não se transformou em mártir, tem seu lugar na História ao lado de humanistas e progressistas que, de alguma forma, contribuíram para melhorar a vidas das pessoas. Mas, para os insensatos e fanáticos, não passa de um bandido de 5ª categoria. Com sua pele curtida de nordestino e oprimido, pôde sobreviver a tudo e retornar triunfalmente, pois suas armas não são as de fogo, mas aquelas que todo pobre e despossuído possuem, a verdade e as ideias. E Haddad? Será jogado na máquina de moer carne da política, no reino da baixaria e da traição, e as enfrentará com que armas? Seu intelecto? Quantos políticos do baixo clero, dos esgotos que geraram bolsonaros e cunhas, se impressionarão com essas armas? As da palavra, da crítica, da sensatez, que só fazem sentido se acompanhadas da generosidade, da solidariedade, do desinteresse? Alguém aí aposta nisso?
por Antônio Uchôa Neto
Nenhum comentário:
Postar um comentário