Carta para o Futuro #16: PIB e desenvolvimento

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07 de março de 2024

Os aspectos distributivos do PIB brasileiro continuam deixando a desejar, assim como os aspectos quantitativos (Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil)

PIB e desenvolvimento

Entre a celebração dos números e a realidade dos impactos ambientais, onde realmente estamos na busca por um desenvolvimento que beneficie a todos, sem comprometer o futuro?


por Carlos Bocuhy

O Brasil obteve 2,9% de crescimento em seu Produto Interno Bruto no ano passado, acima do esperado, puxado, principalmente, pelo desempenho do agronegócio. Mas o que esse crescimento representa como sustentabilidade para o Brasil?


Para compor adequadamente a leitura do PIB, é necessário também levar em conta o meio ambiente. Ou seja, o crescimento de um país deve retratar a existência de condições basilares que permitem qualidade de vida, não só para as atuais gerações, mas também para as futuras. Trata-se de visão temporal ampliada, com sustentação ao longo do tempo, de forma a garantir sobrevivência para as condições vitais da natureza.


Joseph Stiglitz, ex-economista-chefe do Banco Mundial e Prêmio Nobel de Economia, em pronunciamento na ONU, resumiu de forma visceral o comportamento das atividades financeiras: "Infelizmente, a ação coletiva que é central nas corporações mina a responsabilidade individual".


A ação coletiva a que se referiu Stiglitz está expressa na máxima de Wall Street: "Greed is good" (a ganância é boa). 


O PIB também se comporta assim. É apenas quantitativo. As atividades do mercado business as usual ("negócios, como sempre") são diferentes da economia política de Adam Smith, que não concebia a vida econômica sem ética, nem permitia a ganância por qualquer meio, ou de forma alheia às "normas de conduta social garantidas pelos sentimentos morais dos indivíduos". 


Tendo em conta a fragilidade ética, social e ambiental do business as usual, é preciso refletir em termos qualitativos o que de fato representa o atual índice de crescimento de 2,9% do PIB brasileiro.


Em primeiro lugar, o mero crescimento é uma abstração dispensável. A lógica do crescimento infinito foi abandonada por grande número de nações desde os anos 70, como consequência das discussões travadas na Conferência de Estocolmo.

 

O termo crescimento passou a ser compreendido de forma ética, visando o desenvolvimento. O IDH passou a ser utilizado como mensuração do progresso nas dimensões básicas do desenvolvimento humano: renda, educação e saúde, em contraponto à leitura meramente quantitativa do PIB. 


Portanto, existe hoje um conjunto de indicadores que podem fazer a leitura da qualidade de vida de um povo, representando assim uma notável evolução cultural e humanística na relação sociedade-economia. 


Para compor adequadamente a leitura do PIB, tendo por base ética e desenvolvimento, é preciso considerar que o indicador saúde, forte componente do IDH, compreende também o meio, ou seja, a saúde ambiental. 


Constatou-se, mais recentemente, o extrapolamento das condições de sustentabilidade dos sistemas vitais do planeta, reconhecendo-se o termo Antropoceno para designar a atual era dos humanos, cujas ações intensas rompem limites de suporte planetários. O maior exemplo disso é o aquecimento global.


Portanto, o PIB, per se, é um conceito quantitativo de arrecadação. Quanto mais um país produzir, seja o que for, sejam armas, bombas ou pesticidas, o seu PIB também aumentará. Se destruir florestas e ecossistemas aumenta a produção, o PIB cresce e o passivo não é contabilizado.  


A sociedade brasileira tem direito a saber o que, de fato, representa o atual crescimento bruto de 2,9% da economia nacional, o que o gerou e quais são seus reflexos para a vida e a qualidade de vida dos brasileiros.    


A Teoria dos Jogos do ex-economista Mário Henrique Simonsen afirma:


"A economia de mercado é eficiente quando se trata de suprir bens privados (bens que o comprador paga para obter). Quando se trata de bens públicos que só podem ser oferecidos conjuntamente à toda a comunidade, o mercado deixa de ser eficiente. O melhor para cada um é que fique para os outros o financiamento desses bens de uso coletivo. Todos agindo assim, passam a faltar bens públicos por ausência de quem os custeie".


A afirmativa de Simonsen amplia dúvidas qualitativas sobre o PIB. Por exemplo, o crescimento de 2,9% do PIB significa o que em termos de sustentabilidade? Essa cifra teria favorecido bens públicos, os direitos difusos de toda a sociedade brasileira? Em que proporção?


Vejamos: segundo o IBGE, o PIB em 2023 cresceu 2,9% ante o ano anterior, refletindo o desempenho das três atividades que o compõem: agropecuária (15,1%), indústria (1,6%) e serviços (2,4%). Na agropecuária teve destaque a soja (27,1%) e o milho (19,0%), que alcançaram produções recordes na série histórica. Na Indústria, os destaques foram as Indústrias extrativas, que cresceram 8,7%, com alta na extração de petróleo e gás natural e de minério de ferro. Em serviços, todas as atividades apresentaram crescimento, especialmente as financeiras, de seguros e serviços relacionados (6,6%).


São inegáveis as boas intenções e discurso progressista estabelecido hoje nos ministérios da Economia e do Meio Ambiente. Defendem eixos de transição ecológica para o modelo econômico brasileiro. O futuro poderá ser promissor, mas é preciso saber o estado da arte, o que nos diz a realidade física do crescimento atual do PIB com relação a essa desejável transformação. 


As novas diretrizes ministeriais buscam meios de aumentar a curva do crescimento econômico e diminuir a curva dos impactos ambientais, em particular a das emissões de gases de efeito estufa. A tarefa é árdua. Enquanto regamos essas sementes, temos que analisar a colheita que o mundo real nos traz. 


Nos 2,9% de crescimento não se nota possibilidade de crescimento redistributivo, especialmente para os mais vulneráveis. Segundo o IBGE, o PIB per capita alcançou R$ 50.193,72 (em valores correntes) em 2023, um avanço (em termos reais) de 2,2% em relação ao ano anterior.  


O grosso dos mais de R$ 10,9 trilhões do PIB brasileiro em 2023, especialmente do crescimento de 2,9%, encontra-se majoritariamente nas mãos das grandes corporações do agronegócio, petróleo, gás e mineração de ferro.  


Do ponto de vista da curva de impactos ambientais provocadas pelo agronegócio, esta cresceu avassaladoramente, diretamente relacionado às alterações do uso do solo e desmatamento. Basta observar a destruição do Cerrado, que perdeu 7.852 km² de vegetação nativa em 2023, aumento de 44% com relação a 2022, visando favorecer a produção agrícola, o maior vetor de desmatamento no Brasil.


"O Cerrado é como uma floresta invertida, que armazena carbono no subsolo. Se esse estoque for liberado, podemos inviabilizar a meta do acordo climático de Paris, de manter o aquecimento do planeta em 1,5°C", alerta Daniel Silva, da entidade WWF.  


Se focarmos a contribuição dessa crescente devastação para o PIB do Matopiba (Mato Grosso, Tocantins, Piauí e Maranhão), vamos perceber que essa região é responsável por 75% do desmatamento do cerrado (494 mil hectares em 2023), especialmente para plantio de soja, commodity que capitaneia o crescimento do PIB brasileiro. 


De outro lado, o rebanho bovino continua a crescer sobre as áreas desmatadas ilegalmente na Amazônia, com lucratividade concentrada na mão de grandes conglomerados.


Além disso, há um expressivo aumento na extração de petróleo e gás. Tudo aquilo do qual a humanidade está lutando para se livrar, desmatamento e fósseis, em um só pacote. 


O Brasil, "enamorado" da Opep, persegue galgar da 7ª para a 5ª, senão a 4ª, posição global como exportador de combustíveis fósseis para os próximos anos. Esses objetivos, amplamente anunciados, assim como os números da devastação provocada pelo agronegócio e pecuária colocam em xeque a própria proposta de transição ecológica hoje defendida pelos ministérios do Meio Ambiente e da Economia.    


Até onde esse crescimento econômico, que é devastador e concentrado, poderia ser benéfico?


Na metade do século XX, Simon Kuznets defendeu que a acumulação seria como a maré alta que faria flutuar todos os barcos, o que significa defender que concentração e crescimento beneficiariam a todos. 


A "Curva de Kuznets" baseou-se em estudos entre 1913 e 1948, com relação à distribuição da renda. Esses mesmos argumentos foram analisados por Thomas Piketty, em O Capital do Século XXI, demonstrando que uma avaliação sobre maior período de tempo do que o originalmente apontado pela curva de Kuznets apontava que não houve tantos benefícios sociais e a renda concentrou-se em poucas mãos, portanto, os benefícios do crescimento não podem ser classificados, em visão mais humanista, como exemplo de modelo de desenvolvimento a ser perseguido. 


As teorias econômicas são ricas em metáforas. Afirma-se que "a maré eleva todos os barcos" e em resposta: "especialmente os iates".


Os aspectos distributivos do PIB brasileiro continuam deixando a desejar, assim como os aspectos quantitativos. O PIB continua sendo construído majoritariamente sobre altíssimos impactos ambientais, privilegiando sistema extrativo primário e predatório, prosseguindo na tendência de abandonar a busca de valores agregados e avanços em inovação, tecnologia e, principalmente, sustentabilidade. 


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