Carta para o Futuro #17: Risco hídrico e mudanças climáticas em São Paulo

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22 de março de 2024

O uso do "volume morto" adiou o racionamento, mas não evitou o colapso do Sistema Cantareira (Foto: CartaCapital)

Risco hídrico e mudanças climáticas


Sem ações corretivas, a sustentabilidade hídrica da região metropolitana de São Paulo enfrentará sérios problemas, como ocorreu em 2014


por Carlos Bocuhy

Em 2014, São Paulo atravessou uma crise hídrica jamais vista. Forte estiagem fez com que os oito sistemas regionais de abastecimento metropolitano entrassem em declínio ao longo do ano. O volume morto dos reservatórios começou a ser utilizado. Essa reserva de "fundo de poço" foi objeto de análise pelo MPF, que apontou a existência de metais pesados, contaminantes e bactérias. 


Nesse período a região vizinha de Itu entrou em colapso, de fevereiro a dezembro de 2014. A região sequer contava com reservatórios para utilizar "volume morto" e sua sobrevida por longo tempo se deu com caminhões-pipa.


A situação ocorreu 20 anos depois de a Campanha "Billings, eu te quero Viva!" ter alertado para cenários similares. À época, temia-se que a proximidade de blecaute hídrico levasse à concretização de um projeto com gasto superior a R$ 2 bilhões, para reverter à metrópole o rio Juquiá, nas encostas da Serra do Mar, bombeado serra acima, via Serra de Paranapiacaba, com permanente gasto de energia e prejuízos ecossistêmicos.


Foi exatamente o que ocorreu entre 2016 e 2019. A crise da água de 2014 impulsionou a reversão do rio São Lourenço, da bacia do Juquiá. De forma emergencial e com fraquíssimo debate público, a obra consumiu o valor de R$ 2,2 bilhões, que daria para impulsionar fortemente o saneamento das águas metropolitanas.


Neste dia 22 de março, Dia Mundial da Água, implantado há 30 anos, durante a Conferência Rio 92 das Nações Unidas, precisamos levar em conta que as mudanças climáticas estão criando situações desafiadoras, diferentes de tudo o que já passamos, com maior índice de vulnerabilidade hídrica. 


A vulnerabilidade é geralmente definida como uma situação em que estão presentes três elementos: exposição ao risco; incapacidade de reação; e dificuldade de adaptação diante da materialização do risco.


Depois de anos de cobranças da sociedade civil, o Ministério do Meio Ambiente estabeleceu, em 2019, o que convencionou chamar de Política Nacional de Segurança Hídrica (PNSH). A proposta foi agregar, ao planejamento hídrico, instrumentos ao alcance da Política Nacional de Recursos Hídricos, assegurando disponibilidade de água para o presente e o futuro, além de atuar na prevenção de eventos hidrológicos críticos. 


A PNSH usa indicadores populacionais, econômicos, ecossistêmicos e de resiliência para indicar riscos aos quais a sociedade deve estar atenta. Porém, na prática não considera as questões mais importantes para a elaboração e consecução de políticas públicas: o controle social.  


O modus operandi governamental tem sido míope quanto a empreender medidas corretivas e novos projetos com efetiva participação social. É comum que se espere o agravamento da situação, para então, em situação emergencial, viabilizar acordos de bastidor, de interesses variados e sem controle social. 


No Brasil, a maior prova disso é a lacuna de funcionamento do Conselho Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), que não se reúne desde 2022. Além disso, sua composição não contempla, de forma ampla, a participação social.  


A recomendação do Ministério Público Estadual ao Governo do Estado de São Paulo, em 2014, durante a crise hídrica, visava impedir vazões abusivas do Sistema Cantareira para a região metropolitana de São Paulo. Logo no caput cita o ilustre jurista Celso Antonio Bandeira de Mello: "Não atuar, não prevenir, ou não reprimir quando a ordem jurídica impõe atuação, prevenção, repressão, é decidir não atuar, não prevenir, não reprimir ou, quando menos, decidir assumir os riscos por isso. É, em suma, descumprir as determinações do Direito. Se, podendo cumpri-las e de modo suficiente para evitar o dano, o Estado se omite, evidentemente, sujeita-se à responsabilidade oriunda de sua injurídica inação"


Considerando que a dimensão metropolitana é o maior desafio hídrico do futuro, em função de grandes contingentes populacionais, aplicar conceitos de vulnerabilidade hídrica à região metropolitana de São Paulo deverá envolver a democratização das decisões, com participação efetiva da população, maior depositária dos impactos ambientais climáticos. Deve ter o direito de participar das decisões que afetarão suas vidas, contando com percepção social, inclusive da ciência, que comumente é abafada por interesses particulares e dissociados da coisa pública.   

 

Essas posições foram defendidas há 30 anos, em 1994, no "Tribunal das Águas em Defesa da Represa Billings", realizado pela Campanha Billings no Dia Mundial da Água, no Salão Nobre da Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP). Entre os defensores ligados à Campanha "Billings, eu te quero Viva!" encontrava-se o ilustre geógrafo Aziz Ab' Saber. 


Posteriormente, a campanha tomou rumo internacional, denunciando em Washington e Nova York os desmandos dos financiamentos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) para a despoluição do rio Tietê. O programa apresentava avanços lentos, concentração do tratamento em megaestações, tubulações de esgoto por longas distâncias favorecendo empreiteiras e insumos, além de desarticulação institucional que levou sub-regiões, como o ABC paulista e a região de Guarulhos, a intensos atrasos no cronograma de despoluição. 


Os desmandos paulistanos hídricos são centenários e podem ser conferidos em "O centenário imbróglio das águas paulistanas", publicado recentemente no site O Eco.

Estudos promovidos pela Campanha "Billings, eu te quero Viva!", em 2008, apoiados e atualizados pelo Instituto Brasileiro de Proteção Ambiental (Proam) em março de 2024, apontam alto estado de vulnerabilidade hídrica metropolitana, elencando pontos prioritários para adequação à sustentabilidade hídrica. 


Entre estes, destacamos: o enfrentamento da emergência climática com processos adaptativos; reconstituição da produção hídrica natural e uso racional da água; proteção dos ecossistemas naturais de transposição de água (rios voadores); contenção do assoreamento dos corpos d'água para aumentar capacidade de armazenagem; contenção da poluição com tratamento de esgotos domésticos, efluentes industriais e carga difusa metropolitana; combate à formação das Ilhas de calor urbanas; fortalecimento da participação e controle social com democratização nos processos de gestão hídrica e adaptação climática; fortalecimento multissetorial da governança hídrica metropolitana com ampla participação social; e priorização da agenda de sustentabilidade hídrica, com planos, ações e políticas públicas intersetoriais.


Nas conclusões, o estudo considera que os determinantes globais, regionais e locais apontam que, sem ações corretivas, há forte possibilidade de quebra da sustentabilidade hídrica da região metropolitana de São Paulo em médio prazo, como ocorreu em 2014. 


O crescente desequilíbrio climático poderá gerar blecautes hídricos e aumento do custo da água com reflexos para a economia regional; e a necessidade de obras emergenciais de infraestrutura com custos elevados para transposição de mais água de regiões cada vez mais distantes, com mais prejuízos para outras populações e seus ecossistemas naturais. 


Com abordagem inovadora, adota indicadores de vulnerabilidade hídrica específicos, identificados em grau de risco baixo, médio e alto. É preocupante que os 12 itens considerados como prioritários, que de forma geral já tratamos aqui, apresentem classificação de vulnerabilidade alta. 

Dimensionar a vulnerabilidade hídrica da metrópole de São Paulo representa superar a falsa segurança das ações pontuais de sucessivos governos, apresentadas como se fossem políticas públicas voltadas à sustentabilidade. A percepção do risco é fundamental para orientar políticas corretivas e preventivas. É elemento central para a sobrevivência da sociedade contemporânea.


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