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Crônica dominical de Luis Fernando Veríssimo

Inúteis
As eleições para o Parlamento Europeu que acontecem neste fim de semana são um plebiscito disfarçado sobre o futuro da Comunidade Europeia. Entre os candidatos pedindo votos há um forte e barulhento grupo — talvez uma maioria — que é contra a comunidade e, portanto, quer ser eleito para uma instituição que pretende destruir.

As razões para sabotar a União Europeia vão desde o nacionalismo emocional até a reação da Europa do Norte ao atraso que representam as economias letárgicas da Europa do Sul e à ameaça de admissão de mais países problemáticos à comunidade, favorecendo a invasão de mão de obra barata do Leste. E passando pelo ressentimento de muitos com o domínio da Alemanha de Merkel sobre todos. A receita de frau Merkel para a saúde geral da comunidade é apfelstrudel,apfelstrudel e não tem conversa.
Assim, boicotada por dentro, a Comunidade Europeia caminha para ser outra Nações Unidas, um monumento à inutilidade de uma boa ideia. As Nações Unidas também nasceram como um projeto de congraçamento, para substituir as guerras pelo debate e o embate irracional pela razão.
É só lembrar todos os conflitos que acometeram o mundo desde que as Nações Unidas existem, sem que a organização pudesse evitá-los ou condicionar a política de grandes potências, para desesperar a Humanidade.
A ONU faz um trabalho valioso nas áreas da saúde e da alimentação internacionais e continua lá, no seu imponente prédio à beira do East River, mas, no seu propósito principal, fracassou. A Comunidade Europeia também tem um vistoso Parlamento, em Bruxelas, simbolizando sua própria frustração.
É difícil imaginar um retrocesso radical e imediato do seu projeto de união — embora até a permanência do euro, a moeda única de uma nação fictícia longe de ser única, esteja sendo posta em dúvida — mas o resultado das eleições deste fim de semana pode muito bem sinalizar o prelúdio de um suicídio.

A televisão francesa não para de mostrar razões para ninguém ir ao Brasil, na Copa ou em qualquer outro momento. Ao mesmo tempo as agências de viagens não param de vender pacotes para franceses irem à Copa. E a música do Brasil está em alta como nunca em Paris, até em lugares inesperados.
Três cantoras francesas e uma guitarrista fizeram um show há dias no Teatro Bouffes du Nord só de compositores brasileiros, de Villa-Lobos a Hermeto Pascoal e incluindo “Tico-tico no fubá”. Uma cantora francesa chamada Malu le Prince está resgatando a obra injustamente esquecida do Johnny Alf. E um show da Stacey Kent com um quarteto de cordas no Teatro Chatelet não só tinha uma maioria de canções do Tom Jobim e outros brasileiros como acabou em batucada. Você acreditaria na Stacey Kent tocando agogô?

Coisas da vida

As letras das músicas atuais, essas inventadas no campo do sem nexo do bate-estaca, não dizem nada, não marcam, não despertam o cantarolar pelo fato de não dizerem alguma coisa que faça parte de uma passagem especial, de uma saudade recente ou das mais antigas. Até mesmo as letras de músicas do Wando, como Moça, contam uma história com cheiro de baseada em fatos reais. Nunca Mais Eu E Você, Ainda Bem, Perduto, da Ornela Vanoni, Dio Come Ti Amo, por aí, mexem com o imaginário do romântico ultrapassado, fora de tempo, fora de época. Não importa. Pois bem, não saberia dizer quando me apaixonei pelas estrelas ou quando o feitiço delas me pegou de jeito, mas o fato é que ainda hoje me enterneço com certas músicas, frases soltas, inclusive algumas poucas que aparecem aqui e ali, pela internet da vida, pinçadas por raros românticos que se refugiam ou buscam efêmeras companhia nos facebooks modernos e que coincidem com o meu pensar, digamos assim. Pouco me importa as rimas, as métricas, as palavras que combinam para fazer de um verso um verso, de uma quadra uma quadra, de um soneto um soneto ou uma poesia uma poesia.
A ordem das palavras nada tem a ver com a ordem dos sentimentos porque esses, sim, fazem sua rima pessoal dentro do peito, onde uma ridícula válvula mitral determina se continuamos vivos ou nos prega um susto quando fibrila. Vi de fato, como uma foto, depois de um hiato longo, onde quase fui preso pela surpresa que não teve força para um susto ou graça no aceno que foi o de menos na coincidência da quase passagem na brincadeira do destino. Vai ver, só para testar se o gostar de um dia ainda mexia ou se o peito queria dizer que se vivia um dia, um dia morria como morreu e ficou só na lápide do nome que se repete por ai, mais comum que nunca, sem remeter ao rosto que passou ao oposto do lado de dentro da porta onde a paixão ficou agonizando e depois morta. E românticos, como sempre, sem saber, continuam acreditando em milagres ou no ressuscitar de uma coisa que foi quando precisou ser e também precisou morrer porque é exatamente assim que são as coisas da vida: um começo, um meio e isso aí. E lá estava ela, na outra ponta de um aceno sem jeito, acanhado, tímido, receoso ou um reflexo sem nexo, sem rima, apenas isso; um aceno educado pendurado no olhar de dois olhos grandes debaixo de sobrancelhas especialmente grandes e que ficaram abertas por séculos, exatamente o que pareceu a fração de segundo da passagem rápida, como tudo na vida, que passa e a gente nem se dá conta.
Quando menos se espera, já passou, como tudo na vida, repito. Esta crônica, por exemplo, é dedicada a um rosto que um dia tivemos na moldura das nossas mãos e hoje, como tudo na vida, mudou de mãos. 
Coisas da vida, como se vê! 
Melhor, como se viu...
by A. Capibaribe Neto

Crônica dominical de Luis Fernando Veríssimo

Othelo
Para quem gosta de cinema, Paris é um banquete. Duvido que outro lugar do mundo tenha tantas salas de exibição, entre cinemões e cineminhas. Além dos últimos lançamentos, estão sempre em cartaz reprises de filmes clássicos e festivais de diretores cultuados.
Um favorito reincidente nestes festivais é Ernst Lubitsch, o judeu alemão que representou como ninguém a efervescência cultural de Berlim entre as duas guerras, e, depois, levou para Hollywood seu humor sofisticado.
Gostos rarefeitos como o por comédias americanas dos anos 30 e 40 com o chamado “toque de Lubitsch” são servidos permanentemente em Paris, em pequenas salas onde as instalações precárias não prejudicam nem o conforto dos fanáticos nem a qualidade da projeção.
Foi num desses cinebutiques que vimos recentemente a colaboração de Shakespeare e Orson Welles em “Othelo”, numa versão restaurada. Eu me lembrava de ter visto o filme no seu lançamento nos Estados Unidos, quase 60 anos atrás. Revi agora com, literalmente, outros olhos, pois, infelizmente, não sou uma versão restaurada de mim mesmo.

Orson Welles em Othelo

Orson Welles é, de certa maneira, um anti-Lubitsch. Enquanto o alemão só teve prestígio e sucesso por toda a vida, Welles precisou brigar para fazer seus filmes, sem contar os que não conseguiu fazer.
O fato de ser o autor do que é universalmente reconhecido como um dos melhores filmes de todos os tempos, “Cidadão Kane”, não o ajudou. “Othelo” levou três anos para ser filmado. Sem produtores dispostos a patrociná-lo, Welles usou o próprio dinheiro, ganho com seu trabalho como ator, para financiá-lo.
O maior problema, quando as filmagens eram retomadas depois de cada interrupção por falta de dinheiro, era conseguir reunir de novo o elenco. O resultado dessa irregularidade só aparece no filme na variação da maquiagem do mouro, que, em certas cenas, está mais escuro do que em outras.
Fora isso, o filme é impressionante. Nunca, com exceção, talvez, do cinema expressionista alemão, ângulos de câmera e enquadramentos insólitos foram usados tão poderosamente para criar um clima de presságio e drama.
Hoje, um estilo de filmagem parecido seria considerado preciosismo, mas a idade deu uma certa respeitabilidade ao exibicionismo de Welles. Você o degusta com prazer.
“Othelo” tem algumas das expressões mais citáveis de Shakespeare. “Pompa e circunstância’’, por exemplo. E a autodefinição de Othelo como “alguém que amou não sabiamente mas demais’’. E sua gratidão à doce Desdêmona por ter recompensado o seu relato de batalhas e sofrimentos com “a world of sighs”, um mundo de suspiros.
Como em todas as versões de Shakespeare no cinema, você sente não poder assisti-la com um glossário do lado, para não perder nada da linguagem. A solução é resignar-se a não entender a metade e gostar de tudo. Ainda mais na voz “tim-maiesca” de Orson Welles.

Número confidencial

No dia do aniversário "Bem", ela ganhou o telefone com que tanto sonhava: um iPhone! "Leãozinho" deu o aparelho, mas esqueceu de anotar o número que estava já instalado nele. Tinha nada, não, assim que "Bem" voltasse da viagem de urgência que faria a Buenos Aires, acompanhando uma tia doente, se falariam. Um mês passaria depressa. Acostumara-se a chamar a amante de "Bem" porque era assim que tratava a esposa e não haveria risco de trocar os nomes. A mulher tinha um nome comum, mas o de "Bem", era meio estranho: Jopsla! Ninguém sabia a origem do nome, mas não vinha ao caso. "Bem" estava de bom tamanho. Novo telefone, chip novo, pré-pago, e o número não importava, pois sempre que "Bem" ligava, o que aparecia na tela de "Leãozinho" era "número confidencial" que era para disfarçar no caso da patroa atender. Por uma questão cultural, toda patroa se acha no direito de atender o celular do seu esposo e se o telefone dele tocasse assim, no meio de qualquer hora do dia, ela perguntava em tom de exigindo uma resposta: 
- Quem é, meu filho! 
Se o "Leãozinho" ficasse dizendo "alô! alô!", no terceiro "alô", já estava combinado, "Bem" desligaria imediatamente sem falar". E aí, ele respondia sem alterar, o batimento cardíaco ou inventar uma desculpa mais complicada: 
- Sei lá, Bem, é número confidencial. 
E a "Bem" da paixão ligaria meia hora depois. Tudo certo, tudo combinado, e nunca falhou. Ele, por sua vez, nunca ligava para ela, para evitar de deixar gravado um número que podia ser questionado por sua patroa há mais de trinta e cinco anos. "Bem", a bem da verdade, nasceu quinze anos após o casamento de Leãozinho com sua patroa. Ela, virgem donzela, casara-se com ele de véu e grinalda e levava muito a sério esse negócio de "até que a morte os separe", senão...! Tolerância zero! Marcação cerrada. Os encontros dos dois sempre eram pela manhã, três, quatro vezes por mês, quando Leãozinho tinha, digamos, permissão para uma caminhada na Beira-Mar. Aliás, por falar em Beira-Mar, certa vez Bem se engraçou de um cordão de ouro que recebera da esposa e ele, muito afoito, tirou do pescoço e colocou no pescoço dela. Em casa, juntou o útil ao agradável dizendo que um marginal conhecido na área havia arrancado com alguma brutalidade. "Olha aqui, olha aqui..." - apontando para a marca roxa do beijo dado só para infernizar, Bem era assim mesmo, bem moleca. Pois bem, "Bem" ganhou o telefone chique e viajou com a tia doente a Buenos Aires. A tia doente era um senhor também já entrado na idade, como Leãozinho. Bem foi, mas não gostou de Buenos Aires, reclamou que não entendia a língua e mais ainda detestou o frio. Melhor para "a tia doente" que ficou a maior parte do tempo no quarto do hotel barato perto da Calle Florida! Na outra ponta, Leãozinho contava os dias. "Assim que você chegar, quero que vá me encontrar com aquele vestido curtinho, mas vá só de vestido..." "Combinado, Leãozinho, pode deixar...". Quando Bem chegou, ligou. Mas quem atendeu? A patroa. Bem estava no banheiro... Lá de dentro, quase dá a maior bandeira ao gritar entre o ansioso e o desesperado: 
- Quem é? Quem é? É confidencial?" - deixou escapar. "É, por quê?" respondeu a patroa emendando "por acaso está esperando alguma ligação confidencial?" Bem não ligou depois de meia hora, mas se ligou ele não soube. A patroa não só desligou o telefone como fez pior: tirou a bateria.
by A. Capibaribe Neto no Diário do Nordeste

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo


O Chico Caruso — cartunista, chargista, cantor e cômico — conta a anedota com perfeito sotaque alemão. Numa cervejaria lotada da Munique atual as pessoas vão pouco a pouco se dando conta da presença de uma figura conhecida entre eles. Será mesmo quem estão pensando? Não pode ser. Mas é: Adolf Hitler está ali! Começa, a princípio baixinho, mas depois aumentando de volume, um coro: “Volta, volta...”

Hitler resiste, mas, finalmente, o clamor se torna irresistível. Ele, então, se ergue, pede silêncio, e declara:
— Está bem, eu volto. Mas desta vez não vou ser bonzinho não!
Uma versão ampliada da anedota deu num romance chamado “Ele está de volta’’, do filho de mãe alemã e pai húngaro Timur Vermes, que fez sensação na Alemanha e está fazendo o mesmo no resto do mundo. Já existe uma tradução em português.
No romance, narrado na primeira pessoa, Hitler inexplicavelmente volta à vida — nem ele sabe explicar como — e encontra uma Alemanha em plena crise moral, com uma juventude imbecilizada pela televisão, YouTube, reality shows e similares, invadida por raças escuras que no seu tempo eram caçadas como inferiores — e governada por uma mulher! Hitler tem uma solução radical para todos os problemas da Alemanha e o romance acaba com ele sendo cortejado por vários partidos para voltar à política.
Timur Vermes escreveu uma sátira histórica (a ascensão do nazismo e os anos de vigência do Terceiro Reich são recontados do ponto de vista do ex-führer redivivo) e política, mas ela também pode ser lida como nostalgia disfarçada.
Na França, faz sucesso parecido com o do livro do Vermes um filme intitulado “O que foi que fizemos ao bom Deus?”, sobre a família de um católico conservador cujas quatro filhas se casam, respectivamente, com um judeu, um muçulmano, um asiático e um negro, para desespero dos pais. No fim, tudo acaba bem e o filme é uma cálida lição de tolerância — ou não é.
Há quem o veja como um alerta contra o multiculturalismo e a miscigenação. Tudo depende da identidade ideológica de quem o vê. O crítico do “Le Monde’’ disse que o filme parece feito de encomenda para a Frente Nacional, xenófoba e reacionária. Já o crítico do direitista “Le Figaro” adorou.
O livro “Ele está de volta’’ termina com a criação de um slogan para Hitler usar na sua campanha eleitoral. O slogan é “Não foi tudo ruim’’.

Crônica dominical de Luis Fernando Veríssimo

Progressão
A senhora, quem é?
— A esposa, doutor.
— Muito bem. Conte-nos o que houve.
— Não sei, doutor. Ele chegou em casa, depois de esperar horas na fila de um banco, ser assaltado no ônibus, passar pelo supermercado sem poder comprar nada e começado a ver o “Jornal Nacional”.
— E foi ficando vermelho. Entendi. Ele está cheio. Ou, para usar o termo científico, pê da cara.
— É grave, doutor?
— Se conseguirmos controlar a tempo, não. O perigo é ele passar para uma fase mais aguda, quando em vez de vermelho ficará fulo.
— Fulo?
— Uma cor indefinida, entre o vermelho e o roxo. Nesta fase, o importante é ele ficar em isolamento, sem receber notícia de espécie alguma, principalmente do Brasil.
— O que eu posso fazer, doutor?
— Fale com ele sobre a seleção, sobre como o Felipão parece estar acertando e como faremos bonito na Copa. E outras coisas boas. Só cuidando com a dosagem, para não parecer gozação. Os efeitos colaterais podem ser sérios.
— O que pode acontecer?

Luis Fernando Veríssimo - do que fomos cúmplices involuntários


Quem defende as barbaridades cometidas pelo o regime militar no Brasil costuma invocar os mortos pela ação dos que contestavam o regime. Assim reduz-se tudo a uma contabilidade tétrica: meus mortos contra os seus.

Pode-se discutir se a luta armada contra o poder ilegítimo foi uma opção correta ou não, mas não há equivalência possível entre os mortos de um lado e de outro. Não apenas porque houve mais mortes de um só lado, mas por uma diferença essencial entre o que se pode chamar, com alguma literatice, de os arcos de cumplicidade.
O arco de cumplicidade dos atentados contra regime era limitado à iniciativa, errada ou não, de grupos ou indivíduos clandestinos. Já o arco de cumplicidade na morte de contestadores do regime era enorme, era o Estado brasileiro.
Quando falamos nos “porões da ditadura” onde pessoas eram seviciadas e mortas, nem sempre nos lembramos que as salas de tortura eram em prédios públicos, ou pagas pelo poder publico — quer dizer, por todos nós.
A cumplicidade com o que acontecia nos “porões” em muitos casos foi consentida, mesmo que disfarçada. Ainda está para ser investigada a participação de empresários e outros civis na chamada Operação Bandeirantes durante o pior período da repressão, por exemplo. Mas a cumplicidade da maioria com um Estado assassino só existiu porque o cidadão comum pouco sabia do que estava acontecendo.
A contabilidade tétrica visa a nivelar o campo dessa batalha retroativa pela memória do país e igualar os dois arcos de cumplicidade. Não distingue os mortos nem como morreram. Todas as mortes foram lamentáveis, mas os mortos nas salas de martírio do Estado ou num confronto com as forças do Estado na selva em que ninguém sobreviveu ou teve direito a uma sepultura significam mais, para qualquer consciência civilizada, do que os outros. O que se quer saber, hoje, é exatamente do que fomos cúmplices involuntários.

O primeiro homem

Era um dia como outro qualquer no Paraíso. O sol havia acabado de nascer. Elefantes tomavam banho no lago, leões se espreguiçavam e pássaros voavam de uma árvore para outra.
Era um dia como outro qualquer no Paraíso, exceto pelo fato de que, sob a sombra de uma árvore mais afastada, uma dupla observava tudo atentamente e em silêncio.
– Vai fazer um dia bonito hoje, comentou a serpente.
Deus ergueu os olhos e olhou de um lado para o outro antes de responder.

Artigo semanal de Leonardo Boff

"A beleza salvará o mundo": Dostoiewski nos ensina como

Dos gregos aprendemos e isso atravessou os séculos, que todo ser, por diferente que seja, possui três características transcendentais (estão sempre presentes pouco importa a situação, o lugar e o tempo): ele é o unum, o verum e o bonum, quer dizer ele goza de uma unidade interna que o mantem na existência, ele é verdadeiro, porque se mostra assim como de fato é e é bom porque desempenha bem o seu lugar junto aos demais ajudando-os a existirem e coexistirem.

Crônica semanal de A. Capibaribe Neto

A melhor bússola
Uma bússola do meio do nada só indica o Norte e a direção que contrapõe a ele. No meio do nada, é impossível saber o que existe nesse Norte se não se tem noção do que existia ali quando se perdeu. Quem, não se lembra do pavor que era, quando criança, se perder da mãe em plena Praça do Ferreira. E hoje mesmo, em uma praia, um clube que seja ou qualquer lugar...
Já adulto estive perdido assim e foram várias vezes. Brasil afora, no meio da mata; na Itália, Islândia, em Tállin. E não podia demonstrar pavor, cara de assustado, pagar mico, dizer pura e simplesmente "estou perdido!" "Pra onde o senhor quer ir?" - e se eu não soubesse? Saí por aí muitas vezes caminhando na direção de um nascente qualquer ou de um poente preguiçoso. Ia em busca de uma luz especial, uma sombra, não para descansar, mas para inseri-la no contexto dessa luz que havia encontrado, dando especial forma a um rosto, a uma paisagem, um beco, um portal, uma criança, uma ruga.
Certa vez, eu me perdi na terra de Papai Noel, nos confins da Finlândia, caminhando por uma trilha da floresta de eucaliptos. O silêncio era de doer nos ouvidos, mas era um silêncio mágico que atraía, que envolvia e, depois de muito caminhar, não sabia mais de onde tinha vindo nem como fazer o caminho de volta.
Senti um aperto no peito, uma verdadeira sensação de estar perdido em um lugar extremamente longe demais: a Laplândia, onde se fabricam os brinquedos das crianças do mundo inteiro que acreditam em Natal...! Não carregava uma bússola, não tinha noção de nada e o caminho que me trouxera até ali se cruzava com muitos outros... Eram rastros de trenós. E aí, parei.
Olhei para um lado, para o outro. Acima de mim, um céu de estrelas brilhantes como jamais houvera visto em toda a vida. Estavam todas fora de lugar. A estrela que indicava o Norte não indicava mais nada. Eu já estava no Norte. E o Cruzeiro do Sul? Nada. A sensação de estar perdido era mais sufocante ainda por não escutar o som de absolutamente nada...
De repente, o uivo distante de um lobo. Onde eu fora me meter? Imagine-se dentro de um enorme salão bebericando uma boa taça de vinho... E aí, tudo fica às escuras. Onde estaria uma mesa para pousar a taça? Onde estaria a garrafa do vinho? Onde estaria o rosto simpático que congelou na nossa memória justo quando tudo escureceu? Ora, dentro em breve, estaríamos vendo a mesa, a garrafa e até o rosto, mas o céu não acende suas luzes quando não é noite de Lua.
Lembro que ri. Não sei de que, mas ri. Talvez debochando de mim mesmo. E agora? Quando saíra do hotel, a temperatura era de 26 graus abaixo de zero. Se ficasse parado, poderia congelar. E antes que o pavor desse lugar ao desespero, uma cortina de luzes verdes começou a se agitar no firmamento. A Aurora Boreal começara seu espetáculo naquela noite especial! Podia até morrer, mas morreria assistindo a um dos maiores espetáculos da Terra. E pensei: a Aurora Boreal acontece no Norte, então, ali era o Norte. Basta voltar na direção contrária. E voltei feliz para o Sul...

Crônica semanal de Luis Fernando Veríssimo


Eu e ele, por Luis Fernando Veríssimo

No vertiginoso mundo dos computadores o meu, que devo ter há uns quatro ou cinco anos, já pode ser definido como uma carroça. Nosso convívio não tem sido muito confortável. Ele produz um texto limpo, e é só o que lhe peço.

Desde que literalmente metíamos a mão no barro e depois gravávamos nossos símbolos primitivos com cunhas em tabletes até as laudas arrancadas da máquina de escrever para serem revisadas com esferográfica, não havia maneira de escrever que não deixasse vestígio nos dedos.
Nem o abnegado monge copiando escrituras na sua cela asséptica estava livre do tinteiro virado. Agora, não. Damos ordens ao computador, que faz o trabalho sujo por nós. Deixamos de ser trabalhadores braçais e viramos gerentes de texto. Ficamos pós-industriais. Com os dedos limpos.
Mas com um custo. Nosso trabalho ficou menos respeitável. O que ganhamos em asseio perdemos em autoridade. A um computador não se olha de cima, como se olhava uma máquina de escrever. Ele nos olha na cara. Tela no olho.
A máquina de escrever fazia o que você queria, mesmo que fosse a tapa. Já o computador impõe certas regras. Se erramos, ele nos avisa. Não diz “Burro!”, mas está implícito na sua correção. Ele é mais inteligente do que você. Sabe mais coisas, e está subentendido que você jamais aproveitará metade do que ele sabe.
Que ele só desenvolverá todo o seu potencial quando estiver sendo programado por um igual. Isto é, outro computador. A máquina de escrever podia ter recursos que você também nunca usaria (abandonei a minha sem saber para o que servia “tabulador”, por exemplo), mas não tinha a mesma empáfia, o mesmo ar de quem só aguenta os humanos por falta de coisa melhor, no momento.
Eu e o computador jamais seríamos íntimos. Nosso relacionamento é puramente profissional. Mesmo porque, acho que ele não se rebaixaria ao ponto de ser meu amigo. E seu ar de reprovação cresce. Agora mesmo, pedi para ele enviar esta crônica para o jornal e ele perguntou: “Tem certeza?”

Fernando Brito - escrito para sua filha

Escrito sobre a caneta

Disse a você que cabia um mundo dentro de qualquer pequena coisa, um simples objeto do dia-a-dia.
A caneta estava à mão e – que malandragem a minha! – a escolhi como tema.
Caneta é fácil!
Inda se fosse um prego, uma tampa de lata, um pedaço de biscoito, talvez precisasse ser poeta. Mas  caneta?
Caneta cabe um infinito dentro!
Mas a se a caneta é fácil, não é óbvia.
Não é uma caneta e pronto!
Um pedaço de plástico, com um canudo também de plástico por dentro, cheio de tinta, com uma ponta roliça – feita daquele palavrão, tungstênio – e uma tampa, é claro, pra tampar.
Não, isso seria fazer pouco caso da caneta, como quem olha uma pessoa e diz:  olha, lá estão cabeça, tronco e membros!
Caneta tem jeitos, intimidades, profundezas.
Está vendo esta da qual falamos?
Aparentemente transparente?  Pois ali dentro estão terras e mares, pessoas e bichos, amores, ódios, tristezas e sorrisos, como numa Arca de Noé onde sobrevivem à nossa falta de tempo.
Estão ali apertados, presos, olhando invisíveis, como que nos pedindo para que os libertemos, para voltar a ser m-a-r, a ser g-a-t-o, a ser c-ã-o, a serem os nomes que se confundem com eles próprios.
Veja aquela coluna azul, esta atmosfera de tinta onde estão estes viventes dos três reinos (quem disse que pedra e água não vivem?) .
Para que eles sobrevivam, a caneta deve ser azul como um céu carregado de ar profundo.
Caneta que não é azul, é arremedo de caneta. Perde a vida profusa que toda ela deve conter.
Caneta preta? Cor de máquina, de computador, de letra de forma pré-moldada, de documentos e jornais, de verdades absolutas que não querem resposta, contestação. Preto é letra de forma, certa demais.
Vermelho é o contrário, cor de coisa errada, de nota baixa, condenação de nosso próprio escrito.
Roxo? Verde? Funéreo, um e plácido o outro, ambos demais. Já imaginou uma declaração de amor, um carinho, em roxo? Uma saudade, um adeus, em verde claro?
Azul, tem de ser azul a minha caneta, azul profundo e discreto, para que quem brilhe e chame a atenção seja a palavra escrita.
Além da cor, é importante para a boa expressão o estado da tinta. Como ensinam os professores de física, todo líquido toma a forma  daquilo que o contém.
E o que contém a tinta deitada sobre o papel é a palavra, se amoldando, líquida, ao que se quer dizer, sem faltar pedaços ou se derramar pelas bordas, deitada ou de pé conforme o talho do escrevinhador.
Além do estado físico adequado, deve a tinta gozar de bom estado de nervos.
Fria e esquecida nas gavetas, ela resseca; quente demais, tem o mau hábito de estourar, de preferência no bolso das camisas novas, de vez que canetas devem ser conduzidas sempre perto do coração.
Agora tratemos das vantagens da caneta sobre o lápis na escrita, na qual reina absoluta, deixando ao seu primo o império dos desenhos.
A tinta é indelével, como diziam as embalagens engraçadas dos tinteiros de antigamente, enquanto o grafite se apaga com a borracha.
De um lado, isso condena o arrependimento e o erro com a punição do rabisco evidente, envergonhante.
De outro, dá-nos a sensação de eternidade: risco na pedra, entalhe na árvore, destinados a sobreviver ao escritor e seus sentimentos.
Todos nós queremos ser vistos, queremos ser lembrados. Quem não quer uma máquina fotográfica, uma filmadora? E como, por nascimento ou idade, uma certa hora acabamos sendo mais bonitos por dentro que por fora, a caneta acaba nos dando os melhores retratos, os mais expressivos, os mais verdadeiros.
Canetas têm múltiplas utilidades. Além de escrever, servem para tirar cera do ouvido, emprestam suas tampinhas para esgravatar a sujeira das unhas e transmudam-se em zarabatanas para os moleques atirarem bolinhas de papel na nuca dos professores. Mas, além disso, já foram – ainda são – tantas outras coisas…
Já foram espadas, flechas de Cupido, cetros de reis sábios, chicotes de tiranos, serviram de grades de prisão, alfanjes no pescoço dos condenados, chaves para algemas de presos, tanta coisa…
São objetos poderosíssimos que, com um ajuste ali, outro aqui, vêm desafiando os séculos.
Dizem até que são encantadas, varinhas de condão detentoras do poder misterioso de materializar os nossos sonhos.
Termino aqui esta minha ode à caneta, que escrevi com uma delas, no ônibus, e passo a limpo no computador.  Corrijo, assim, discretamente, as vacilações da mente e a insegurança da mão humanas.
É que a caneta, ela sim, é uma máquina perfeita, delicada demais para um bruto como eu.

A vida tem sentido?

Entardecer: a viagem ao começo da noite
“Vi o fim de mil vidas, de jovens e velhos. E cada um deles estava tão seguro de sua realidade, de que sua experiência sensorial formava um indivíduo único, dotado de propósito, de significado, tão seguro de que era mais do que um fantoche orgânico. Bom, a verdade sempre aparece, e todo mundo percebe que, quando as cordas são cortadas, todos caímos.
Não importa se eles já estão mortos, você ainda consegue ler em seus olhos. E o que você vê? Que eles deram boas-vindas à morte. Não no início, mas exatamente no último instante.
Isso é um alívio inconfundível, pois antes eles estavam com medo e aí percebem pela primeira vez como é fácil simplesmente se entregar.
E eles percebem naquele último nanosegundo que eles, que você, você mesmo, que todo esse grande drama não passa de um ajuntamento de presunção e de tola vontade, e que você pode finalmente se deixar levar, agora que não precisa suportar tudo com tanta firmeza, e ver que sua vida, que todo seu amor, seu ódio, suas lembranças, sua dor, tudo isso foi uma mesma coisa: tudo o mesmo sonho, um sonho que você teve dentro de um quarto trancado em sua cabeça, um sonho sobre ser uma pessoa.”
Ao lermos essas palavras, ditas pelo personagem Rustin Cohle (interpretado pelo vencedor do Oscar, Matthew McConaughey) do seriado True Detectives, é quase impossível resistir à tentação de clicarmos em outra aba do navegador, consultarmos outra notícia qualquer ou qualquer atualização no Facebook.
Os mais descuidados em relação às suas próprias vidas, os menos interessantes dentre os seres humanos podem até esboçar uma frase padrão como “bobagem, o importante é deixar a vida me levar” e recorrer a alguma difusa lembrança sobre suas convicções espirituais — mas nada muito complicado ou sério porque cansa.
Trata-se de puro instinto de autopreservação.
As palavras do personagens são quase tóxicas, radioativas para nossos egos, ciosos que somos de nossa importância.
Porém, há uma desonestidade fundamental em lermos essas palavras e desviarmos nossos olhos delas sem ao menos uma detida reflexão. E se trata do pior tipo de desonestidade: aquela que cometemos contra nós mesmos.
É desonesto não porque as palavras de Rustin sejam necessariamente verdadeiras, mas porque só podemos ser francos diante de nós próprios após experimentarmos a visão de mundo que nos é duramente proposta por elas, encarando a questão sobre se tais palavras descrevem ou não uma verdade. Afinal, o personagem Rustin e todos aqueles pensadores e filósofos reais que ele representa não pretendem expressar uma opinião, mas descrever um fato.
Então, se a descrição feita for falsa, apenas perderemos um pouco de nosso tempo com uma bobagem. Mas se a descrição for real, então nossa desonestidade resultará em que só descobriremos a verdade sobre nossas próprias vidas quando esse conhecimento não for de utilidade alguma.
E acontece que mesmo uma verdade dura, amarga, é mais útil e preciosa para nossas vidas do que todas as ilusões coloridas que possamos ter a respeito dela, e acredito nisso pois tenho um lema que me guia: às vezes há uma grande potência em reconhecer o quão pouco se pode. Leia mais>>>

Autores na internet


Do amigo (e leitor) Enondino, vem uma mensagem para refletir sobre a 'nossa' omissão em relação a fatos que de alguma forma representam a angústia da sociedade contemporânea, a violência que campeia, por exemplo. O texto, na sua integridade, apoia-se em poemas equivocadamente (ou má-fé?) atribuídos a Maiakóvsky, Jorge Luís Borges e Bertold Brecht.
 
Desde que, por inevitável, incluí a Internet como meio de minhas leituras diárias, há muitos anos, deparo frequentemente com essa experiência, um desserviço à literatura e  --  por que não dizer?  --  um tipo de acinte contra a cultura intelectual das pessoas. Os casos mais comuns, pelo que já pude constatar, envolvem, no Brasil, nomes de poetas conhecidos, como Carlos Drummond de Andrade, Mário Quintana, Vinicius de Moraes e, o que me chama mais a atenção, o alemão Bertold Brecht, o argentino Jorge Luís Borges e o russo Vladimir Maiakóvsky. 
 
Ao último, quase sempre, é atribuída a autoria do poema No caminho com Maiakóvsky, com alterações estruturais que comprometem a sua qualidade, que é indiscutível, diga-se em tempo, na forma como o produziu o poeta brasileiro Eduardo Alves da Costa: 

"[...] Tu sabes, / conheces melhor do que eu / a velha história. / Na primeira noite eles se aproximam / e roubam uma flor / do nosso jardim. / E não dizemos nada. / Na segunda noite, já não se escondem: / pisam as flores, / matam nosso cão, / e não dizemos nada. / Até que um dia, / o mais frágil deles / entra sozinho em nossa casa, / rouba-nos a luz e, / conhecendo nosso medo, / arranca-nos a voz da garganta. / E já não podemos dizer nada."

Quando parar para almoçar é uma grande ideia

O dono de uma livraria de Seattle fez um livro depois de ter uma ideia “revolucionária”: almoçar todos os dias com os funcionários. Motivar sua equipe a parar no meio do dia para apreciar uma refeição e a companhia uns dos outros. Sim, o que é normal no Brasil, um hábito cultural reforçado pela lei trabalhista, parece ser uma grande novidade por aqui.
O horário de trabalho nos Estados Unidos é de oito horas, como no Brasil, mas não existe o intervalo de uma a duas horas “para repouso ou alimentação”, como prevê a CLT. Almoço em dia de trabalho pode significar um pão com sardinha trazido de casa, uma salada comprada na lanchonete da esquina ou mesmo um sanduíche dessas banquinhas no meio da rua. Não raro, a “refeição” vira uma espécie de lanche rápido comido na mesa do trabalho, enquanto se lê um email. Ou entre uma reunião e outra. Ou, pior, durante uma reunião.
Coisa difícil de acontecer no Brasil, aqui eu tenho frequentemente reuniões de trabalho marcadas para o meio-dia. Sem constrangimento para ninguém – a não ser para mim, claro, por atrapalharem meu horário de almoço.

Hábito é bicho difícil de domar. Mesmo depois de muitos anos fora do Brasil, eu ainda preciso parar no meio do dia para almoçar. E comer uma refeição decente. E, se possível, usar esse intervalo para socializar, aliviar as tensões, reenergizar para a segunda metade do dia. Como fazer isso com uma pausa de 15 minutos para engolir rapidinho um prato rápido, que nem quente está?
Às vezes, meus colegas americanos organizam uma saída para almoçar juntos. Parece um grande evento. Invariavelmente, o restaurante escolhido serve sanduíche e sopa no meio do dia. Acompanho a turma e não reclamo, mas sempre penso comigo: “Isso não é almoço”. E fico querendo distribuir umas cópias do tal livro que proclama as maravilhas do almoço no trabalho.
Melissa de Andrade é jornalista com mestrado em Negócios Digitais no Reino Unido. Ama teatro, gérberas cor de laranja e seus três gatinhos. Atua como estrategista de Conteúdo e de Mídias Sociais em Seattle, de onde mantém o blog Preview