O incrível mapa de aromas da cachaça
Eu tenho um amigo chamado Renato Figueiredo que uma vez escreveu um livro sobre cachaça. O conteúdo do livro é excelente e levava o título: “Estava no seu nariz mas você não viu”. Nas mãos de um bom editor, a publicação ganhou um novo nome (De Marvada a Bendita, ed. Matrix) e as prateleiras das principais livrarias do país.
Apesar do novo título trazer com mais clareza o tema do livro, que fala da transição da cachaça de uma bebida marginalizada para um produto mais nobre, o nome inicial da obra tinha uma crítica explícita e uma mensagem importante: nós brasileiros muitas vezes não enxergamos nem valorizamos as nossas próprias riquezas.
Em 2010, com o lançamento do Mapa da Cachaça, tinha como propósito cair na estrada e aprender mais sobre o Brasil. Assim como o Renato, enxergava no tema uma maneira de falar sobre uma riqueza nacional pouco conhecida.
De lá pra cá, com o Mapa, desenvolvi projetos sobre design, gastronomia, história, turismo; e tive o reconhecimento de produtores, especialistas, acadêmicos e até mesmo do Ministério da Cultura – uma grande conquista, considerando que, ao meu ver, falar sobre cachaça sempre foi uma questão cultural.
A última realização foi um projeto multimídia para a Copa do Mundo chamado Cachaça e Gastronomia, desenvolvido com o Ministério da Cultura, com a participação do Destemperados, chefs, bartenders e estudiosos da aguardente de cana.
Além de fotos, vídeos, receitas e artigos, criamos um livro que apresenta uma relação dos 100 melhores lugares do Brasil para se beber uma boa pinguinha.
Como um dos destilados mais antigos da América, produzida no Brasil nas primeiras décadas do século 16, a bebida é um dos primeiros ingredientes de uma gastronomia nacional.
Nas mãos de um povo criativo como o brasileiro, a cachaça se espalhou por todo o país e ganhou diferentes receitas, dando uma complexidade sensorial única para a bebida e abrindo a minha mente para um novo projeto: entender os seus aromas e sabores.
Mapeando os aromas da cachaça
Depois de analisar uma vasta bibliografia sobre o tema, ter como referência outras rodas de aromas, realizar análises físico-químicas e degustar todo tipo de pinga, criamos o Mapa de Aromas da Cachaça – uma realização em parceria com a Aline Bortoletto, doutoranda em cachaça pela ESALQ-USP.
O Mapa de Aromas foi dividido em 11 famílias aromáticas: floral, frutado, especiarias, vegetal, fermentado, adocicados, torrados, castanhas, animal, medicinal e defeitos. Os aromas são criados durante a fermentação, destilação ou pelo processo de envelhecimento da cachaça em barris de madeira – uma das coisas mais legais e próprias da cachaça, que ganha complexidade aromática ao passar por madeiras nacionais, como a amburana, o ariribá, o jequitibá, o bálsamo e muitas outras.
O objetivo da ferramenta é facilitar a comunicação sobre as características sensoriais durante a degustação de uma ou mais cachaças. O anel central apresenta classificações mais genéricas, como floral e especiarias, enquanto o anel externo apresenta notas mais específicas, como nozes e caramelo.
Uma ferramenta para identificar o “Terroir da Cachaça”
Um dos potenciais do Mapa de Aromas Cachaça é nos ajudar a entender como características locais de produção influenciam o resultado sensorial da bebida. Fatores como tipo de solo, regime de chuva, leveduras, formas de destilação, envelhecimento em madeiras, tradições e culturas regionais definem o que podemos chamar de Terroir da Cachaça.
Será que a cachaça produzida no norte de Minas Gerais é diferente da cachaça da Serra Gaúcha? Quem já teve a oportunidade de conhecer exemplares dessas duas culturas de produção pode dizer que sim!
Na região de Salinas prevalecem cachaças com alto teor alcoólico e aromas que remetem às especiarias do bálsamo ou ao adocicado da amburana. A cachaça branca daquela região é tão agressiva que o envelhecimento é etapa fundamental. O conhecimento das técnicas do uso de madeiras nativas tornou a região famosa. Já no interior do Rio Grande do Sul, as cachaças são mais delicadas e apresentam aromas florais provenientes da fermentação por leveduras selecionadas – uma técnica nova e bem difundida no estado.
Outras regiões do Brasil utilizam ingredientes naturais durante a fermentação, como o fubá de milho, o farelo de arroz e até a mandioca. Outras possuem pequenos alambiques de cobre aquecidos por fogo direto, enquanto alambiques mais novos são aquecidos por caldeiras a vapor. O uso dessas técnicas podem ser práticas antigas ou modernas, mas todas favorecem na criação de aromas e sabores, caraterizando algumas regiões e estilos de produção.
Se o Mapa da Cachaça tem o compromisso de mapear a cultura e a histórias dos alambiques, faz sentindo também mapear as técnicas de produção e as características sensoriais de cada região, favorecendo o entendimento de um terroir – um trabalho extenso considerando que o Brasil é milhares de vezes maior do que a Escócia, país onde o terroir do scotch uísque já é discutido e valorizado há muito tempo.
A cachaça, o café, o queijo… estavam no seu nariz, mas…
Se a bebida nacional tem história e cultura, eu precisava entender também as suas qualidades sensoriais. Acredito que o estrangeiro faça isso muito bem com o vinho, a cerveja, o chocolate, o café e outras tantas produções artesanais de seus países como forma de valorizá-los.
Por aqui, seja com o queijo da Serra da Canastra ou da cachaça de Paraty, muito estudo ainda merece ser realizado. O que vejo pela estrada é muita riqueza escondida, ou pior… se perdendo.
Com a roda de aromas da cachaça a vontade é contribuir para entendimento de uma produção centenária e valorizar as particularidades daqueles que produzem uma boa pinguinha – e no processo, tornar a degustação uma experiência ainda mais prazerosa.
E aí, o que acharam do Mapa de Aromas da Cachaça? Gostariam de adicionar algo? Sugestões são sempre bem vindas.
FELIPE JANNUZZI
Felipe é produtor cultural, empreendedor e consultor multimídia. Na velhice, talvez sossegue e monte o próprio alambique, mas agora quer conhecer e divulgar todos os cantos do Brasil. É editor no Mapa da cachaça.