Duas economias, por Delfim Netto

Em um dos lados, a bem vinda política social. Do outro lado, uma miopia em relação a valorização do câmbio

Há algum tempo é visível uma clara diferença de comportamento de “duas economias” no Brasil, separadas, de um lado, pela bem-vinda política social inclusiva ajudada por um “bônus” externo transitório, e, de outro, pela míope política econômica que insiste em ignorar os efeitos deletérios no longo prazo da valorização da taxa de câmbio.

Dois argutos economistas do Departamento de Estudos e Pesquisas do Banco Central, Sérgio Afonso Lago Alves e Arnildo da Silva Correa, publicaram um competente trabalho: “Um conto em Três Hiatos: Desemprego, Utilização da Capacidade Instalada na Indústria e Produto”, com conclusões potencialmente muito importantes para a política monetária.

Nele examinaram a relação entre o nível de desemprego, a utilização da capacidade da indústria (ambos sujeitos a erros estatísticos sérios) e a taxa de inflação, com uma versão interessante da chamada curva de Phillips. A inovação fundamental é que separaram as dinâmicas dos setores de bens comercializáveis da dos não comercializáveis (as duas economias), construindo duas curvas de Phillips. Ressaltaram, assim, os papéis do mercado de trabalho e da capacidade instalada na indústria, para explicar a nossa taxa de inflação.

Os resultados do estudo sugerem que:
1. O mercado de trabalho tem impactos relevantes sobre a taxa de inflação, ou seja, o hiato de desemprego é a variável de demanda importante para explicar a taxa de inflação dos bens não comercializáveis, enquanto...
2. O hiato de utilização da capacidade é a variável que melhor explica a inflação dos bens comercializáveis.
Tais conclusões talvez diminuam as incertezas que existem a respeito da dimensão do efeito do hiato de produto sobre a taxa de inflação da parte de alguns economistas (eu, inclusive), e do próprio Banco Central, pelo que se vê nos Relatórios de Inflação. A separação proposta ajuda a explicar por que “enquanto o setor industrial apresenta fraco desempenho e dificuldades de reagir, o mercado de trabalho encontra-se aquecido, gerando pressões sobre o hiato do produto”.

Mesmo reconhecendo as inovadoras possibilidades abertas pelo artigo é prematuro esquecer as velhas dificuldades. Elas estão resumidas num não menos competente trabalho de três economistas do IPEA (Mario Mendonça, Adolfo Sachsida e Luis Medrano), “Inflação Versus Desemprego: Novas Evidências para o Brasil” (in Economia Aplicada 16(3)2012:475-500), onde procuraram estimar uma Curva de Phillips Novo-Keynesiana para o conjunto da economia. Trata-se de estudo cuidadoso que utiliza dados mensais de janeiro de 2002 a março de 2012. A curva construída inclui como variável dependente a taxa de inflação do ano e como variáveis “explicativas” a inflação do ano anterior, a expectativa de inflação para o ano seguinte, uma variável que representa o “custo marginal” (de fato, a taxa de desemprego) e outra que representa um choque de oferta (de fato, a taxa de câmbio).

Suas principais conclusões são de que:
1. Um único resultado permaneceu robusto nos diversos experimentos. A expectativa de inflação e a inflação passada têm relevância na dinâmica do processo inflacionário. O papel das expectativas parece aumentar no período mais recente.
2. Com relação ao desemprego, seu impacto de curto prazo sobre a inflação depende do conjunto de variáveis representativas (próxies) adotadas. Na maior parte dos casos essa relação foi negativa, como era esperado. Já no longo prazo esse efeito torna-se difícil de ser captado, dando a impressão de ser nulo ou pouco relevante na formação do processo inflacionário. De qualquer forma e em qualquer dos casos, o efeito real da taxa de desemprego sobre a inflação foi próximo de zero.

É por isso que, quando a autoridade monetária sugere cautela antes de apressar-se a aumentar a taxa de juro real, mas demonstra disposição de fazê-lo se necessário, ela está mais afinada com o mundo real do que seus críticos.