Fechando a conta

Crônica de A. Capibaribe Neto

Nem lembro a razão de haver guardado a conta de um jantar que coloquei junto com as nossas últimas fotos e outros pequenos registros de uma história de amor que se aquietou na gaveta das melhores saudades, mas quando olhei no verso do comprovante lá estava o motivo: havia um coração desenhado e um "eu te amo" confessado. O "para sempre" estivera implícito nos olhares cúmplices que se misturaram com o vermelho do vinho em comemoração a mais um ano juntos. Pelo registro do tíquete da conta passamos mais de duas horas à mesa, um de frente para o outro, lembrando das coisas boas vividas até ali. Procurei, entre as lembranças que não tive coragem de jogar fora, outro registro depois daquela noite. Não encontrei. Não havia mais nada depois daquele dia, hora e minutos constante do registro detalhado, como o número de pessoas e quanto seria para cada um no caso de dividir o total. Voltei no tempo e procurei lembrar o que havia acontecido depois para explicar a ausência de datas guardadas. É bem verdade que havia jogado fora, num ímpeto de emoções precipitadas, as mais belas passagens e capítulos de uma história que escrevemos juntos acreditando que havia um lugar especial na eternidade para cada "para sempre" que encerrava todas as dedicatórias em cartões, bilhetinhos deixados sobre a mesa de cabeceira e fotografias antes desses selfies aborrecidos.


O passar do tempo já se impôs. Não como um remédio, uma solução ou um bálsamo para os arrependimentos tardios, mas pelo seu próprio passar que foi aumentando as distâncias entre o último "para sempre" e a realidade. Naquela noite, brindamos aos bons momentos, às dificuldades decorrentes do começo tumultuado, confuso, mas também e principalmente à força e determinação com que nos demos as mãos e mergulhamos nos braços que nos tornavam fortes, invencíveis, sem medo de ser feliz. O hiato que aconteceu entre aquele comprovante de conta com o coração desenhado e a promessa que não foi cumprida muita coisa aconteceu. Vez por outra uns flashes mostram detalhes nítidos das partes desgastadas da complexa engrenagem de uma convivência. Os sons das mesmas vozes ternas e quase sussurradas nos abraços que misturavam as peles, os cheiros, os arrepios, apareceram alterados, ríspidos, como nas disputas por razões ou confissões de culpas sem sentido. O que se ganha com a culpa do outro? O que fazer com a razão que não tem lugar dentro do perdão? O pior é quando a lembrança mais nítida é de uma chave partida ao meio, jogada sobre uma cama e o orgulho desnecessário a bater uma porta que se fechou de vez. No comprovante da conta estava descrito o prato que pedimos e o bom vinho que atiçou o desejo que nunca arrefeceu durante anos de cumplicidade, e não havia, naquele momento mágico a mais leve sombra de bruxas que se arrastam pelas escadas com suas vassouras agourentas assustando a felicidade alheia. Depois do último gole da última taça do vinho - com um olhar transbordante de desejo a escorrer pelo rosto insinuante, ela falou com uma voz morna: "vamos embora daqui... Quero te beijar muito, fazer muito amor contigo..." A rosa vermelha que dei a ela ainda sobreviveu vários dias ao lado da cama sempre cúmplice, testemunha dos aconchegos e dos diminutivos que me acompanham em silêncio, me acordam no meio da noite e me levam à janela para contemplar as mesmas estrelas que curtíamos juntos da janela que não existe mais... Em algum lugar de um "para sempre" mágico, alguém pediu a conta de uma história de amor único e ela foi fechada para sempre...