O tempo não para

Por Leandro Tadeu

um texto de Joao Araujo relembrando seu filho Cazuza
Fui talvez o último a saber do talento de Cazuza. Ele costumava se trancar no quarto para trabalhar e escrever suas letras. Para não ser invasivo, eu respeitava o espaço dele e me mantinha afastado. Também nunca tinha ouvido Cazuza cantar em casa. Por isso, me surpreendi quando o vi cantando Edelweiss num espetáculo no Rio de Janeiro. Nunca pensei que ele tivesse extensão vocal para cantar.
Mais tarde, ao voltar de uma viagem, fiquei novamente surpreso quando Lucinha me disse: “Cazuza vai estrear numa boate em um show com o Barão Vermelho”. Foi um susto maior ainda. Nem sabia que ele tinha entrado para um grupo de rock. Fui ver o show e levei Moraes Moreira comigo. Era tudo muito ruim, o som era de garagem, mas senti que ali naquele palco havia algo mais, um talento, algo mais que um menino curioso para trabalhar com música.
Como pai, é muito difícil obter distanciamento para julgar o trabalho de um filho. A gente acaba embaralhando um pouco as coisas. Mas percebi, como profissional do disco, que Cazuza era talentosíssimo. A época – os anos 80 – ajudou um pouco Cazuza a mostrar esse talento. Era uma época brava, difícil. E a impressão que eu tenho é que, em todos os tempos, o criador se sente muito mais estimulado quando tem algo contra que protestar. Cazuza já era um rebelde por natureza. Um rebelde “sem calça”, como ele mesmo brincava. E a época o ajudou, pois, apesar de não demonstrar, Cazuza era um ser político por excelência, e aquele momento formava um cenário político que lhe permitiu desenvolver uma obra que vai ficar.
Eu me surpreendi foi com o estilo romântico da sua obra. Mas era, na verdade, um lado que Cazuza sempre teve: o da identificação com a música popular brasileira. Eu e Lucinha respirávamos música brasileira. E Cazuza participou de alguma forma disso, o que o levou a buscar como referência autores que não tinha conhecido, como Cartola, Nelson Cavaquinho, Dolores Duran, Lupicínio Rodrigues… Mas, de qualquer forma, levei um susto quando ele compôs canções como Codinome Beija-Flor.
Como pai, tenho profundo orgulho de Cazuza em qualquer tempo ou lugar. Fico feliz quando ouço uma música dele ao entrar no elevador, ao viajar de avião, ao ligar o rádio do meu carro… Ou então quando alguém faz uma menção a mim como o “pai do Cazuza”. Tudo a respeito dele me emociona, e me dá orgulho, esse trabalho que o meu menino fez quase sem a gente ter percebido. Eu gostaria muito de entrar na máquina do tempo e voltar alguns anos, até os anos 80, para poder dar valor mais de perto à obra dele no momento em que ela foi criada. Mas a história nunca é assim. A gente quase sempre passa pela história sem se dar conta de que está vivendo nela.
Fui muito resistente à idéia de Cazuza gravar na Som Livre com o Barão Vermelho. Teve dia em que os produtores Guto Graça Mello e Ezequiel Neves chegaram a ir cinco vezes à minha sala para tentar me convencer. Naquela época, eu ainda não tinha olhado com a devida atenção o trabalho de Cazuza. Ainda não tinha parado para observar a profundidade de suas letras e a consonância política com a época em que elas foram criadas. Só pensava que, como pai, seria cabotino se eu gravasse o Cazuza. Até que Guto e Zeca me venceram pelo cansaço. E o mais gratificante de tudo isso é que nunca houve questionamento sobre o fato de Cazuza ter começado a gravar na Som Livre. Isso me deu o conforto de saber que em nenhum momento eu fui um protetor de Cazuza, mas apenas um instrumento inicial para a veiculação do seu talento.
Quase 20 anos depois sua obra está aí, agora documentada neste livro. E só posso repetir, mais uma vez, que tenho um orgulho grande como pai e profissional. Assim como Renato Russo, Cazuza virou uma referência da geração 80, do rock. E uma referência para as gerações que estão por vir. Com energia e coragem impressionantes, ele inscreveu sua obra no primeiro time da música brasileira. E o tempo, que não pára, se encarregou de provar o talento que já existia desde o seu primeiro show.
P.S. Indispensável registrar a meu ver a importância, entre outros, de Rimbaud, Kerouac, Roberto Frejat, Clarice Lispector, Allan Ginsberg, Ezequiel Neves, Billie Holliday, Chet Baker, Ney Matogrosso, Janis Joplin, Carlos Drumond de Andrade e Caetano Veloso no desenvolvimento da carreira do Cazuza.

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