Patativa do Assaré

O Sertão dentro de mim", livro que será lançado hoje na Livraria Cultura, reúne experiências, em textos e imagens, da convivência do jornalista Gilmar de Carvalho e do fotógrafo Tiago Santana com o poeta


Poderia ser um bate-papo comum entre dois amigos que se admiram, respeitam e costumam tergiversar amenidades. Seria, se o encontro agendado em um final de tarde, no café da Livraria Cultura, em Fortaleza, não envolvesse dois dos mais atuantes profissionais da cultura cearense contemporânea: o jornalista e pesquisador Gilmar de Carvalho e o fotógrafo Tiago Santana.



Entre cafés, troca de livros, atualização de boas novas, um motivo especial justificava aquele encontro ímpar entre cearenses tão ilustres: os ajustes finais para o lançamento de "Patativa do Assaré - O Sertão dentro de mim". Organizado e produzido em parceria, o livro narra, em textos e imagens, a vida de outro cearense iluminado, seu Antonio Gonçalves da Silva, que, como o título da obra prenuncia, Patativa do Assaré.



Mas o livro que será lançado hoje, às 19 horas, nessa mesma livraria, com palestra informal, seguida de sessão de autógrafos dos autores, não é só mais uma pesquisa que vem à baila para homenagear nossa ave canora, em mais um de seus aniversários, já que o dia 5 de março marcou 102 anos da chegada ao mundo de Patativa, na Serra de Santana, em Assaré, sul do Ceará, em 1909.



Esse livro é quase íntimo, pessoal mesmo. Os envolvidos em sua concepção, Gilmar e Tiago, conheceram Patativa em seus silêncios, suas rotinas, construíram amizade, cultivaram convivência e privaram de momentos pessoais e intransferíveis. Nesse trabalho, textos e imagens transbordam de afeto pelo poeta que passou pela Terra cantando em versos as misérias do seu povo e a luta do seu tempo.



"Tive muito cuidado com o texto para não me repetir, pois já escrevi muito a respeito de Patativa. Daí veio a ideia do ABC, que é uma estrutura poética muito antiga, onde cada estrofe começa com uma letra do alfabeto. O resultado foram 23 textos na sequência alfabética. Devo dizer que não são textos acadêmicos, no sentido de ter auxilio de autores que ajudem a definir conceitos, com notas de rodapé e tudo mais", antecipa Gilmar de Carvalho.



A arte do povo



Tem mais. As letras que iniciam cada texto foram cortadas em xilogravura pelo artista da tradição João Pedro do Juazeiro, que, aliás, também colabora com seu entalhe peculiar, trazendo, na abertura do livro, uma bela imagem do homem do campo, com seu cigarrinho, sol a pino, casinha ao fundo, só esperando a chuva chegar.



"Esses são textos de minha relação afetiva com ele", diz Gilmar. "Das idas e vindas em aviões e carros, das dificuldades em chegar lá, do hotel ruim, da comida péssima, e do prazer em reencontrá-lo. Nesse trabalho conto momentos de iluminação e alegria quando o encontrava, e da consciência de saber que estava diante de uma pessoa tão especial. Tenho mais de 600 páginas transcritas de entrevistas realizadas com Patativa. Um dia vou ver como posso trabalhar isso", revela o pesquisador.



E se o jornalista Gilmar de Carvalho se mostra na intimidade do demiurgo sertanejo, o fotógrafo Tiago Santana reflete fragmentos da convivência de uma vida inteira, no ensaio realizado na virada do milênio, em 2000, dois anos antes do vôo final, ainda aos 93 anos, do menino violeiro.



"Nasci naquela região e, desde criança, mantive uma relação muito próxima com Patativa. Ele estava sempre na nossa casa, era amigo de meus pais (Eudoro Santana e Emengarda), que na década de 70 foram parar no Cariri por conta de perseguições da ditadura. Ele era muito politizado, conversavam longamente, ele me colocava no colo. Aliás, também segurou meu filho, João, nos braços. Posso dizer que as tardes de conversas em casa, tanta prosa, tanta poesia, me ensinaram a olhar o Sertão diferente. A poesia dele é repleta de imagens", diz Tiago.



O livro "Patativa do Assaré - O Sertão dentro de mim", de 144 páginas, editado pela Tempo d´Imagem e publicado pelas Edições Sesc São Paulo, também traz um primoroso texto do cabra que mais tem orgulho em ser do Crato, o jornalista Xico Sá. O relato de sua experiência pessoal com Patativa do Assaré é impagável, cheio de personalidade e trejeitos hilários, bem ao gosto do povo do Cariri.



A triste partida



A noite chegou rápida e após algumas poucas horas de conversa, compartilhada também, embora rapidamente, pelo fotógrafo Celso Oliveira, que registrou o encontro da dupla com sua Canon, e pelo ex-secretário de Cultura, Auto Filho, era hora da despedida. O professor Gilmar se ausentou primeiro, mas não sem antes fazer os devidos agradecimentos e despedidas, quase formais, mas elegante e cheio de altivez, como sempre. Tiago se demorou um pouco mais e, enquanto descia as escadas rolantes que deságuam no trânsito intenso do cruzamento das avenidas Dom Luís e Virgílio Távora, deixou transparecer a alegria quase infantil pela realização do novo trabalho.



"Sempre tive vontade de falar, utilizando as imagens, dessa experiência em conhecer o Sertão através de Patativa, porque ele foi muito importante no processo de aproximação com aquela região. Patativa é apaixonante, cativante e o material do livro muito rico de informações, vai permitir leituras diversas, tanto do ponto de vista das imagens, quanto dos textos. E estou satisfeito também por esse livro ter saído pelas edições Sesc SP, pois, acredito, proporcionará uma dimensão mais ampla, um alcance de distribuição nacional. Afinal, o Ceará e Patativa merecem", finaliza o fotógrafo Tiago Santana.



O livro foi viabilizado através da Lei de Incentivo à Cultura, do Minc, Banco do Nordeste, Instituto Agropolos e BSPAR.



ANÁLISE



Patativa, poesia, Juazeiro, cafés e cigarros



Conheci Patativa do Assaré ainda criança, em Juazeiro do Norte, quando era comum nossa ave canora participar de encontros e eventos populares que acontecem por lá durante todos os meses do ano. Mas, apesar do magnetismo que sua presença exercia, e do talento extraordinário em recitar, de memória, poemas extensos e complexos, Patativa em nada se diferenciava dos milhares de romeiros-sertanejos que determinavam até nossos calendários escolares. Mas, quando vim me dar conta da dimensão da sabedoria daquele senhorzinho de chapéu de massa, óculos rayban, camisa e calça de poliester, e, claro, com seu cigarrinho que permanecia eternamente apoiado no canto da boca, já frequentava os bancos da faculdade de Letras, na Urca. Aquele sertanejo tão comum nas escadarias da Matriz de Nossa Senhora das Dores, estava presente em diversos livros que passei a manusear desde então. 



Lembro de Patativa, sempre aos sábados, indo e vindo pela Rua São Pedro, se demorando na esquina das Lojas Masa, de seu Ivan Gondim, conferindo os últimos lançamentos em LPs e fitas cassetes. Ele vinha com seu matulão carregado de gêneros alimentícios e ´mezinhas´, e retornava no começo da tarde, ´amuntado´ nas rurais de lotação estacionadas na esquina das Casas Pernambucanas. Nosso derradeiro encontro, ele já aos 90 anos, se deu em sua casa, em Assaré, em um escaldante domingo. Nesse dia, sentados em cadeiras de balanço, conversamos e silenciamos muito, à base de cafés, cigarros e poesias. E como a vida mudou depois daquele dia.


LIVRO 



Patativa do Assaré - O Sertão dentro de mim Gilmar de Carvalho e Tiago Santana



TEMPO D´IMAGEM/SESC SP

2011
144 PÁGINAS
R$ 95
Lançamento, amanhã, às 19 horas, na Livraria Cultura (Av. Dom Luís, 1010 - Aldeota) . Contato: (85) 4008.0800



Trecho de "Cabra da peste"



"Eu sou de uma terra que o povo padece

Mas nunca esmorece, e procura vencer.
Da terra adorada, que a bela cabôca
De riso na boca zomba no sofrê
Não nego meu sangue, não nego meu nome.
Olho para a fome, pergunto: o que há?
Eu sou brasileiro, fio do Nordeste, Sou cabra da peste, sou do Ceará".



NATERCIA ROCHA

REPÓRTER

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