[...] não é humanismo
Carlos Alberto Dória – O Estado de S.Paulo
As ciências não fazem parte da formação de cozinheiros tradicionais. Por isso eles são empiristas incorrigíveis, propensos a acreditar que arte e magia sejam a essência do cozinhar. E são alienados em relação às matérias-primas degradadas que usam, como o frango e o salmão – ignorância escondida atrás de vocabulário mistificador: natural, orgânico, biodinâmico, sustentável.
Mas foi a pirotecnia que contrapôs cientistas como Hervé This e entusiastas da tecnificação culinária como Ferran Adrià. Em comum, só a consciência de que a técnica significa maior exatidão nos processos de transformação. Se as pessoas se embasbacam com isso, é outra questão. Não foi a culinária que criou o poder mistificador da técnica.
No despontar do século 20, Auguste Escoffier ainda acreditava no modelo das ciências à maneira do séc. 19. Apresentou as 5 mil receitas da alta cozinha francesa como fórmulas e exaltou o chef saucier como o químico esclarecido. Depois dele a cozinha se tornou canônica, antes que investigativa, e a inovação migrou do artesanato para a grande indústria. Só em 1976 se sentiu o primeiro abalo do século, quando Paul Bocuse decretou a caducidade das receitas.
Logo vieram o micro-ondas e outros gadgets que Modernist Cuisine elenca. Mas por que pessoas que “twittam” da cozinha erguem barricadas contra as novas técnicas? Por que se aferram no elogio do frango assado dominical, à maneira da vovó, como se o pecado do “vanguardismo” fosse maior que envenenar clientes com salmão e frango intoxicados de antibiótico? Sentem a ameaça aos conhecimentos que dominam e reagem como paladinos de um humanismo encharcado nas velhas marinadas.
Quando Adrià escreve que Modernist Cuisine representa “um novo ponto de partida para o futuro da cozinha”, está dizendo que ele permite que cada cozinheiro aquilate quanto está distante da dinâmica atual do setor. Tecnicamente, a obra é um consolidado do “estado da arte”, não muito mais que isso. E que anuncie um confit de canard ou um acarajé feitos de modos mais eficientes que há 200 anos é uma boa nova, não uma ameaça à memória da vovozinha.
O homem se faz pelo trabalho e não existe uma “essência humana” anterior a ele; a técnica, meramente ferramental, é o que garante resultados mais precisos. Deixar a novidade técnica conduzir a cozinha é o mesmo que deixá-la entregue à magia dos babalorixás: ambos escondem o mundo, em vez de desnudar sua dinâmica material. Para o comensal, contudo, nada se sobrepõe ao próprio gosto.
É SOCIÓLOGO E AUTOR DO BLOG ebocalivre.blogspot.com
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