O livro dos insultos de H.L. MENCKEN

Pintura
Para mim, a pintura parece uma forasteira no mundo das artes. Seu problema é o de que lhe falta movimento, ou seja, a principal função da vida. O melhor a que um pintor pode aspirar é registrar a sensação de um instante, o aspecto momentâneo de alguma coisa. Se quiser sugerir movimento real, terá de fazê-lo por truques palpáveis, os quais pertencem mais ao domínio da carpintaria do que ao da arte. O que um pintor produz pode ser comparado a um simples acorde em música, sem preparação ou resolução. Pode ser bonito, mas sua beleza não se enquadra nitidamente num escalão superior, e a mente logo se cansa dela. Se um homem se posta diante de um quadro por mais de cinco ou dez minutos, é geralmente um sinal de afetação; está tentando se convencer de que tem percepções mais delicadas do que os mortais. Ou talvez seja ele próprio um pintor, interessado pelos aspectos técnicos do quadro, assim como um encanador contempla embevecido uma torneira instalada por um concorrente. Pode ser também que esteja encantado pela história contada pelo quadro – ou seja, pela literatura que o quadro ilustra.
A escultura é um pouco melhor. O espectador, diante de uma estátua, não está vendo algo morto, embalsamado e fixo numa moldura; vê algo que se move quando ele se move. Uma bela escultura, em outras palavras, não é uma escultura, mas centenas delas, talvez até milhares. A transformação de uma em outra é infinitamente agradável; sai-se dela com um estímulo tão satisfatório quanto o provocado por um quarteto de cordas. O mesmo se dá com a arquitetura: esta não apenas rodopia, mas move-se verticalmente à medida que o espectador se aproxima. Quando se passa por um belo edifício, tem-se uma sensação que ultrapassa a de um mero acorde; lembra mais o efeito de todo um cortejo de acordes, como no começo do andamento lento da sinfonia Novo Mundo ou o do conhecido e sovado prelúdio de Chopin. Se fosse um quadro, não demoraria a arrancar bocejos. Ninguém, depois de alguns dias, lhe botaria de novo os olhos.
Este vazio intrínseco da pintura tem os seus efeitos até sobre aqueles que mais vigorosamente a defendem como a rainha de todas as artes. Ouve-se falar de pessoas “superlotando as galerias”, mas sempre se descobre – basta perguntar – que o que elas realmente superlotam são as salas de mostruário. Em outras palavras, extraem seu maior prazer contemplando uma interminável sucessão de quadros novos, e a profusão de acordes acaba produzindo, no final, uma espécie de satisfação confusa. As outras artes produzem um apelo muito mais poderoso e permanente. Já ouvi cada uma das oito primeiras sinfonias de Beethoven mais de cinqüenta vezes, e a maior parte das de Mozart, Haydn, Schubert e Schumann quase tanto. No entanto, se a Dó Menor de Beethoven fosse apresentada esta noite, iria ouvi-la de novo. E não perderia um segundo dela. Até música de categoria inferior pode conquistar esta qualidade duradoura. Outro dia fui ouvir a valsa de Strauss,Geschichten aus dem Wiener Wald (Contos dos Bosques de Viena), pela primeira vez, em muitos anos. Eu a conhecia bem em meus tempos de lubricidade e, anos depois, cada nota continuava familiar. Mesmo assim, deu-me imenso prazer. Imagine alguém extraindo este mesmo prazer de um quadro de calibre correspondente – um quadro tão familiar que este alguém possa reproduzi-lo de memória.
Os pintores, como os barbeiros e ferreiros, são capazes de falar enquanto trabalham, o que lhes permite gabar-se mais de sua arte do que os outros artistas; o mundo, em conseqüência, passa a acreditar que ela é muito complexa e cheia de sutilezas. Isto não é verdade. A maior parte de suas supostas sutilezas são gabolices de pintores que não sabem pintar. Os verdadeiros pintores de categoria tinham pouco a dizer sobre a técnica de sua arte e pareciam não se dar conta de sua dificuldade. Observe os estudos e sketches de Leonardo: você descobrirá que ele era muito mais interessado em anatomia do que em pintura. Na realidade, pintar era para ele uma espécie de segunda natureza; era, em primeiro lugar, um engenheiro, e a engenharia que mais o fascinava era o corpo humano. Vejamos, então, Cézanne. Ele pintava da maneira que lhe parecia a mais natural e ficou surpreendidíssimo quando um grupo de maus pintores, tentando imitá-lo, passou a creditá-lo no Boul’ Mich’ (Boulevard St. Michel) com uma longa série de teorias mais ou menos místicas, a partir do verbete sobre ótica na Encyclopaedia Britannica.
Os homens mais remotos do Paleolítico já eram pintores consumados. Estavam ainda tão perto dos macacos que nem sequer tinham inventado o arco e flecha, a usura, a forca ou o batismo por imersão total – e, no entanto, já eram ótimos desenhistas. Alguns de seus desenhos nas paredes das cavernas continuam mais competentes que a maioria das ilustrações das revistas de hoje. Também esculpiam em pedra e modelavam em gesso, e eram poetas tão competentes como alguns de nosso tempo. Mais importante, eles se mudaram das cavernas para casas artificiais, e os princípios dodesign de arquitetura que criaram, na verdadeira aurora da história, continuam imutados até hoje, sendo papagueados até pelos arranha-céus que apontam suas torres contra os querubins. Ê verdade que aqueles homens primitivos não sabiam desenhar tão bem quanto uma câmara fotográfica! mas não ficavam nada a dever a, digamos, Matisse ou Gauguin. Todo o progresso feito pela pintura nos últimos cinqüenta ou sessenta anos tem sido baseado.em sorrateiros furtos contra a máquina fotográfica ou o espectroscópio. Quando um pintor professa o seu desprezo por esses avanços científicos, estamos diante de um pintor incapaz, na realidade, de pintar ou desenhar, e que tenta esconder sua incompetência através de uma prestidigitação verbal. Esta é a origem da arte moderna e de toda esta conversa fiada sobre cubismo, vorticismo, futurismo e outras tolices.
Considero qualquer ser humano que, com instruções apropriadas, não consiga aprender a desenhar relativamente bem, como um débil mental. Estará num estágio culturalanterior até àquele dos Cro-Magnons. Já o ser humano incapaz de escrever um verso passável, este simplesmente não existe. Costuma ser feito, como todos sabem, até por crianças – e às vezes tão bem que seus poemas saem em livros e merecem solenes estudos. Mas a grande música nunca é escrita por crianças – e não estou me esquecendo de Mozart, Schubert ou Mendelssohn. A música pertence ao último estágio da cultura; compô-la em grande estilo requer extremo aprendizado e a mais alta habilidade natural. Ê complexa, delicada, difícil. Um jovem prodígio pode mostrar algum talento, mas nunca chegará a nada que possa ser classificado de maestria antes da maturidade – antes de ele se dobrar à experiência. O mesmo acontece com a prosa. A prosa não tem biombos onde se esconder, como tem a poesia. Não pode usar máscaras ou perucas. Não é espontânea, mas deve ser fabricada pelo pensamento e pelo esmero. Dá trabalho. Depois da música, é a mais importante entre todas as artes e é, de longe, a mais importante das artes que lidam com a palavra.

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