Mitológicas cidades peregrinas


É muito difícil transportar cidades, mas não é impossível. Pelo menos é o que prova Luciano Maia nesse seu mais recente livro "As cidades míticas - novos poemas da latinidade". Ao visitar cidades, as mais variadas, ele as fotografa duplamente, primeiro com as lentes da moderníssima Nikon, depois com sua sensibilidade, através de palavras que se dão as mãos e cirandam versos assonetados. São 48 cidades visitadas no Brasil e em outros países da latinidade. Não é qualquer cidade escalada para esse time de privilegiadas. Afinal, Luciano Maia visitou muito mais delas mas só as mais íntimas figuram no livro.

Míticas são essas cidades que Luciano tudifica. Dá-lhes uma personalidade além dos muros. Serve-as ao leitor em decassílabos embandejados de luxúria verbal. São cidades que não são apenas o que são. Reconstruídas aos nossos olhos, atiçam nossas paixões andantes. O poeta alcoviteiro não as quer só para si e nos intimida a também possuí-las como damas peregrinas. Bogotá gorda de nuvens, botérica e colombiana, metaforiza-se andinamente. É preciso viajar-se por essas cidades como quem se viaja para além do que é sólido, mergulhando além-muros, pelo material e imaterial, extraindo de cada uma sua fala menos clara.

Para o prefaciador Romeu Duarte Júnior, a cidade é "a maior e mais importante invenção humana". Acontece que antes da invenção da cidade, inventou-se a palavra. Essa, sim, a invenção que permitiu ao homem sobreviver. Foi com ela que Luciano Maia trouxe suas cidades feito peregrinas que se postam aos nossos pés. Quando nos presenteia Salvador, é de braços dados com Gregório de Matos Guerra que a vasculhamos nas sua reentrâncias memoriais. Quando São Luís nos chega, primeiro é Gonçalves Dias e os Timbiras que fazem a festa. Florianópolis nos oferta Cruz e Souza. E Borges com sua aguçada visão metafórica vem de Buenos Aires sopesado de tangos e milongas. Ao saltar para a Espanha, Dom Quixote e Sancho Pança se nos instalam comprovando que são uma só pessoa, razão e sensibilidade somadas.

O poema sobre Recife permite que o poeta acenda a madrugada em Guararapes e considere brancos, negros, caboclos e mulatos como inventores desta pátria de que desfrutamos. Por isso que Recife nunca mais perdeu sua identidade, afinal, primeiro encantou poetas e trovadores, depois os homens da terra preservaram as musas. Essa visão do poeta vai da reinvenção das cidades à sua estrutura de fala. Até a fonética manauara é destacada para caracterizar Manaus como uma cidade que não é apenas floresta e água mas também um sibilar de "S" que imita as curvas que seus rios trazem, nas vozes de seus filhos. A Amazônia é o jardim do mundo.

Natal, como esquina do Brasil, presencia a bifurcação dos ventos, o terral com o mareiro como ele nomeia o maral ou o aracati. Brasília, com todos os seus progressos, com todas as suas falas não deixa de ser candanga, como São Paulo não se livra do pau-de-arara e o Norte não se livra da raiz arigó. São Paulo não é apenas Pauliceia é muito mais uma "policeia" antropológica onde o Brasil come e se come e é comido. Já em Montevidéu sua preocupação é explicar a origem do nome dessa capital. "Monte vi de este a oeste" deu origem a "Montevideo".

Os mitos de Luciano Maia levam a achamentos a perdimentos. Mesmo transitando escombros, são arquiteturas que vão se erguendo como se florissem nos seus tempos áureos. Mesmo assim não são esquecidos os perdimentos acontecidos nas ocupações dos espaços. Esse livro é uma peregrinação pelos templos do mundo urbano. As cidades falam uma língua para o poeta com mensagens que só as privilegiadas sensibilidades conseguem captar. Por isso é que ao chegar a Mendoza o que o poeta vê é uma melosa lua numa poça, "após a chuva à tarde acontecida" (…) "era a lua boêmia e desdormida". Tantas atrações Mendoza oferece aos seus visitantes, mas o que presenteia ao poeta é "essa lua, insone e linda moça".

De Mendoza para Lisboa há um oceano de distância mas a lua é a mesma, testemunhando fados que falam de "desgosto e sobressalto / e vida malfadada à desventura". Acontece que essa lua ao percorrer o chão de pedra, ilumina poças d´água, trazendo luz ao limo. Essas poças não serão lágrimas que a lua chora pelos fados que pressente à "beira-mágoa"? Essa lua está presente em muitos dos seus poemas. Está muito mais presente que os edifícios, ou seja, entre prédios e neons, entre asfaltos e semáforos, é com a lua que o poeta se extasia. Isso tudo leva à conclusão de que as cidades luciânicas preferem se mostrar mais noturnas que diurnas. São mais românticas por serem sombrias.

Tanto em Avignon como em Marselha é de novo a lua que se insinua toda nua. Há uma sensualidade que transpira dessas cidades, da alma urbana cuja janela é a insinuante lua. Por isso que em Santiago de Compostela ela vem chorar os mortos "de um antanho doloroso / num mar de tormentosas vaguidades". Chegando a Granada, é Garcia Lorca que o recebe no seu eterno sonho de liberdade. Entretanto é em Roma onde mais profusa é a presença dos mitos. São legiões de personas que saltam das sugerências de seu texto: imperadores, gladiadores, Marco Antônio nas escadarias do senado discursando para a multidão.

Roma, cidade eterna, transborda mitos, sangra e sua histórias. Até Anitona se banhando na Fontana de Trevi se instala na nossa mente, vinda daquela noite de 1962. O mítico passado daquela cidade nos lança fenomenologicamente em um turbilhão de imagens que oscilam de Rômulo e Remo a Fellini e Antonioni. Os doze césares desfilam na nossa mente. Entre perseguidores e mártires o leitor se coloca como partícipe de uma epopeia que Luciano Maia em apenas quatorze versos destrancou seus muros. A partir daí é bom repousar após tanta andança por caminhos novos que esse poeta constrói sobre estruturas mortas que se tornam vivas.
Batista de Lima

Nenhum comentário:

Postar um comentário