Mais médicos: mobilização dos egoísmos exagerados


O mais espantoso na mobilização dos médicos contra o plano do governo de contratar 12 000 profissionais para trabalhar em regiões pobres do país não é seu caráter egoísta. Vivemos num mundo de ambições individuais e vontade de enriquecer. Adam Smith, um dos pioneiros no estudo do capitalismo, dizia já no século XVIII que o progresso de uma sociedade era fruto da soma de seus egoísmos individuais. 
O problema é o caráter distorcido do debate. Os egoísmos não podem ser exagerados nem beneficiar um lado só. 
Resumindo um pouco o problema: os médicos querem que uma imensa parcela de brasileiros continue pagando as dores de um sistema de saúde desigual e ineficiente – na esperança de que assim poderão proteger suas carreiras e manter seu modo de vida. 
O principal argumento das entidades médicas nada mais é do que uma forma de desviar a discussão para ganhar tempo e, com simpatia dos meios de comunicação e ajuda do STF, impedir uma medida que, sem resolver todos os problemas da saúde do país, pode trazer diversos benefícios palpáveis para a maioria da população – sem que se possa apontar uma única contraindicação. 
Diz-se que não adianta contratar médicos sem melhorar a infraestrutura da saúde pública. É certo que é preciso construir novos hospitais, adquirir equipamentos e também reforçar equipes de apoio. Mas toda pessoa que já foi a um consultório num quartinho de periferia com uma criança doente no colo – pode ser na novela ou na vida real -- sabe a diferença entre encontrar um médico, recém-formado, gaguejante, e uma porta fechada. 
O governo quer mandar médicos para lugares abandonados por nossos doutores. Detalhe: no pleno exercício de suas sempre compreensíveis ambições individuais, os médicos não estão lá, nunca foram para lá e a maioria não pretende colocar os pés por ali. Não querem estes empregos – considerados ruins e sem perspectiva de ascensão -- que o Estado oferece e que tanta gente necessita que sejam preenchidos. 
Para convencer uma parcela a mudar de ideia, o governo oferece um salário bom, de R$ 10 000, e tem a garantia de que as prefeituras vão garantir hospedagem e comida. Nada menos que 2500 prefeitos já deixaram claro que não apenas apoiam o programa mas exigem que seja encaminhado o quanto antes.
Não é uma solução perfeita mas a alternativa é o inferno atual como perspectiva. Com a saúde brasileira na dependência cada vez maior dos movimentos do mercado dos egoísmos, o país não só tem poucos médicos, mas eles estão mal distribuídos. Os cálculos mais otimistas das próprias entidades médicas dizem que seria preciso esperar dez anos para que o país tenha – na média -- o número adequado de médicos para a população. Os pessimistas falam em 20 e até 30 anos. 
Por trás desses números, estamos falando de homens, mulheres e, especialmente, de crianças. São vidas humanas que poderiam ser salvas, todos os dias, pela presença de um médico – capaz de diagnosticar uma diarreia, um câncer a tempo de ser tratado, uma gripe que pode se transformar em pneumonia. Vamos esperar no mínimo dez anos para, teoricamente, ter uma situação um pouco melhor? Quantas milhares de mortes sem necessidade teremos até lá? Quantas vítimas de doenças curáveis, de tragédias sem atendimento?
Num país onde existe menos de 2 médicos para cada 1 000 habitantes, os números não devem enganar. A vida real é muito pior do que a estatística. Os três estados mais ricos -- São Paulo, Rio e Minas – tem quase 2,5 por 1 000. Numa prova da imensa desigualdade, os demais tem menos de 1 por e, neste caso, a perversidade é ainda maior. Atraídos pela rede privada, que paga salários equivalentes mas oferece plantões mais suaves, em estados mais pobres uma imensa maioria de doutores jamais vestiu o avental do SUS nem pretende. Você pode até achar feio, pouco ético mas vamos reconhecer o mundo em que vivemos. Advogados agem assim, idem para engenheiros e mesmo para jornalistas. 
O problema é outro e fácil de ser diagnosticado. Os médicos podem fazer o que quiserem com a vida deles – só não podem querer impedir que a vida dos pacientes mais pobres, aqueles que não tem renda para um plano privado, mesmo o mais baratinho, quem sabe pior que o SUS fora o marketing, fique um pouco, um pouquinho, melhor. 
Profissão de nível universitário, em cursos que pagos com dinheiro público, outros amplamente subsidiados há um descompasso entre os médicos e o país. Os doutores são mais necessário aonde a maioria não quer ir. O plano do governo consiste numa intervenção – em nome do interesse público – para dar um novo desenho a lei da oferta e da procura. Procura-se a racionalidade na defesa de vidas humanas, sob uma Constituição que diz que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado. 
Neste ambiente, toda tentativa de impedir uma melhoria – por menor que seja – no atendimento à população mais humilde só irá contribuir para ampliar o mercado dos planos privados. Obrigará quem tem pouca renda a colocar a mão no bolso – quase sempre vazio -- para comprar aquilo que o Estado tem obrigação de oferecer. Teremos, com o passar do tempo, um país ainda mais vergonhosamente desigual. E, certamente, a saúde estará pior, cada vez mais cara, como acontece em países, Estados Unidos à frente, onde a medicina privada tem uma importância tão grande e oferece um tratamento inferior para a maioria. 
Este médico de 10 000 reais, lá na ponta, costuma resolver 80% dos casos quando aparece na hora certa, no lugar certo. Todos ganham. Menos, claro, aqueles que podem ser dar bem no jogo de carências e oportunidades da situação atual. Há egoísmos e egoísmos, como se vê. 
Esta é a discussão. 
A própria classe média, que costuma reservar olhares de simpatia ao movimento dos médicos, até por uma natural identificação de classe, pois ali encontra amigos, filhos, pais, poderia refletir se não estão querendo que faça um papel ingênuo neste debate. 
Um melhor atendimento por parte do Estado pode livrar a classe média do duplo pagamento de hoje, quando deixa uma parcela pesada de seus rendimentos no imposto de renda – e ainda é obrigada a pagar por um plano privado de saúde que, muitas vezes, sequer entrega aquilo que se espera na hora em que é mais necessário. 
Esta também é a discussão.

Paulo Moreira Leite

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