Mosca na sopa dos conservadores

No início de junho, quando o MPL foi às ruas pedir a anulação do aumento da passagem de ônibus, eu não poderia deixar de aplaudir. Era mais do que razoável.
Uma semana depois, quando a PM paulistana transformou o protesto num banho de sangue, as famílias se juntaram a seus filhos e netos para defender a democracia. Palmas para todos.
O que veio um depois é um processo contrário e confuso, cuja origem e consistência aguardam explicações.
As grandes cidades brasileiras foram ocupadas por multidões que criaram um novo ambiente político. Prefeitos, governadores e a presidência da República foram colocados contra a parede. O mesmo aconteceu com o Congresso. A violência e o vandalismo incluíram ataques ao Itamaraty, à prefeitura de São Paulo. Semanas mais tarde, o governador Sérgio Cabral enfrentou situação semelhante – e mais dura.
Protesta-se contra o que e contra quem?
Aplicando uma sociologia automática, a maioria de nossos analistas justifica os protestos a partir de uma analise apocalíptica.
Como se o Brasil fosse a Espanha em desmanche social, ou os Estados Unidos no pior momento da crise do pós-2008, explicou-se a mobilização, o “monstro”, “a rua”, como o movimento necessário num país em atraso insuportável, num momento histórico de tragédia. Só restava ajoelhar e rezar.
O problema é que a divulgação de dados sociais e econômicos mais recentes mostra que em 20 anos país progrediu de forma notável.
Num país que protesta, os dados merecem uma festa.
Falando de fatos objetivos: o Índice de Desenvolvimento Humano avançou 47,5% e saiu do nível “muito baixo” para se acomodar em patamar considerado “alto”. A desigualdade caiu, a expectativa de vida aumentou. A qualidade de vida tinha nível muito baixo em 85% das cidades. Esse número é de 0,6% em 2010. Pergunte a um estatístico qual a redução ocorrida. Prefiro uma imagem. Se antes ocupava 86 andares de um edifício de 100 pavimentos, o “muito baixo” agora não ocupa um único patamar inteiro. Deu para notar. Então repito: o que era 86 agora é menos do que 1.

O discurso oficial sobre os protestos talvez pudesse ser inteligível se essas melhoras tivessem ocorrido à margem do Estado, como obra do empreendedorismo de cidadãos abnegados num país de autoridades omissas e desonestas.
Errado.
O progresso ocorreu em 20 anos de regime democrático, o mais amplo e duradouro de nossa história, quando autoridades políticas são eleitas pelo povo e não escolhidas nos quartéis.
As mudanças para melhor ocorridas nos últimos anos se tornaram possíveis com a Constituição de 1988, que criou direitos sociais e definiu o combate à desigualdade e a luta por um sistema de bem-estar como um dever do Estado.
Dizia-se que isso era paternalismo, populismo. Olha a piada.
As ideias da turma do impostômetro, aquela que vive da denúncia do Estado, que quer sua redução de qualquer maneira, ficaram longe das melhorias. Foram inúteis, adereços teóricos à margem do movimento real do país.
Passamos as últimas décadas ouvindo que um Estado com recursos é um estímulo ao desperdício, ao desvio, à corrupção – um entrave ao desenvolvimento.
O grande salto ocorreu quando a receita do Estado subiu, passando de 24% do PIB para 36% hoje. Ao contrário do que dizia a ladainha preferida dos nostálgicos da ditadura e seus tecnocratas, para quem o “Estado não gasta muito nem pouco, gasta mal”, a maior parte dos recursos foi bem empregada.
Claro que houve a corrupção, o desvio. Também ocorreram falhas de visão, planejamentos estúpidos.
Mas é bom colocar o debate no eixo real, sem perder a noção de proporção das coisas.
Este progresso, que coincide com os governos de FHC e Luiz Inácio Lula da Silva, não merece ser debatido em termos de Fla-Flu.
Fernando Henrique foi capaz, sim, de garantir a estabilidade da moeda e condições mínimas para o funcionamento do Estado. Ajudou a consolidar o sistema financeiro, necessário para o desenvolvimento.
Mas o IDH não deu o salto – o que era 86 virou menos que 1 – porque se gastou pouco. Isso Roberto Campos já fizera em 64, com auxílio das baionetas militares.
A mudança ocorreu porque o Estado realizou ações em profundidade para favorecer a distribuição de renda, proteger o salário e os direitos dos trabalhadores, o financiamento do crescimento, o investimento no mercado interno. Se for para usar expressões econômicas, se FHC soube economizar, Lula soube dividir. São missões difíceis e desafiadoras.
Mas o debate não é pura economia.
Quando o mundo veio abaixo, em 2008, o governo brasileiro não reagiu com receitas clássicas de cortar despesas, encolher investimentos e jogar a miséria nas costas do povo. Recusou-se a transformar o Brasil numa Grécia. Rejeitou medidas tradicionais que iriam acelerar a recessão. Comparando a reação do governo FHC às crises e a reação de Lula, um estudo da Organização Internacional do Trabalho, OIT, notou a diferença. No governo do PSDB, tomavam-se medidas que favoreciam o ciclo da atividade de econômica. Crescer quando o mundo crescia, cair quando o mundo caia.
No governo Lula, agiu-se no contra-ciclo. Se havia o risco de recessão, investiu-se no crescimento, para impedir que o país fosse abaixo
O último ano do IDH é 2010, final do mandato de Lula, quando o país crescia a 7% e a maioria das políticas sociais do país de hoje amadureceram.
Falando com clareza: os dados do IDH, que retratam um período que se encerra em 2010, registram uma colossal derrota do pensamento antidemocrático brasileiro. Não sobra nada. E é por isso que, mais do que nunca, este pensamento se volta contra a democracia. Nesse terreno, da liberdade, do confronto de ideia, ele tem dificuldade para vencer. E isso é imperdoável.
Querem interromper a história, para tentar que seja reescrita.
E é esta a questão que se coloca agora.
O país vive um ambiente de protesto e mobilizações radicais como há muito não se via.
Até o governo admite que ocorreram omissões importantes e casos graves de incompetência na definição de políticas públicas. Políticas urgentes – como a saúde pública – só foram definidas com atraso.
O mesmo se pode dizer para a educação e outras melhorias urgentes. Mas é bom tomar cuidado com crises artificiais e pensar quem ganha com isso.
É bonito falar em gestos “simbólicos” que em teoria se destinam a “denunciar o capitalismo,” como quebrar vidraças de bancos. Mas é muito mais efetivo, do ponto de vista do povo, reduzir a taxa de juros e ampliar o crédito popular, por exemplo.
Nós sabemos que a violência policial é uma tragédia que atinge tantas famílias brasileiras. Deve ser apurada, investigada e punida.
O caso Amarildo é uma vergonha sem tamanho.
Mas vamos combinar que no Rio de Janeiro, Estado onde se constroem as UPPs, a primeira resposta coerente de autoridades brasileiras ao crime organizado, o ataque indiscriminado à polícia é uma forma de dar braço às milícias, aos bandidos, aos grandes traficantes, certo?
Tudo isso em nome do que mesmo?
Não é difícil saber o que é melhor – ou menos ruim – para o povo.
Com a baderna estimulada, glamourizada, estamos falando em ações que, cedo ou tarde, irão estimular operações repressivas de maior envergadura. E aí, como aconteceu nos protestos contra o aumento dos ônibus, nós sabemos muito bem quem serão atingidos e prejudicados pela falta de liberdade.
Isso porque o clima de baderna ajuda a tumultuar o sistema político.
A eleição de 2014 está aí, quando o eleitor terá a oportunidade de fazer seu julgamento e suas opções. Os protestos mudaram o jogo e podem mudar muito mais.
Há um movimento subterrâneo em curso, porém.
O que se quer é apagar a redução de 86 para menos que 1 e fingir que ela não ocorreu.
O estímulo direto às manifestações mostra até que ponto a turma do Estado mínimo pode caminhar em seu esforço para barrar um processo que contraria interesses materiais e convicções ideológicas. Pode até fingir-se de anarquista.
A presença ambígua de agentes de vários serviços de informação nas mobilizações ameaça ganhar um caráter perigoso, imprevisível, como acontecia às vésperas da grande derrota democrática de 1964, quando marinheiros, cabos, sargentos foram infiltrados para jogar sua energia contra o governo João Goulart.
Alguns eram reacionários bem treinados, prontos para ajudar a serpente da ditadura em seu veneno. Impediam acordos, soluções negociadas e pactos construtivos. Outros eram jovens radicalizados, estimulados ao confronto direto por uma compreensão errada da conjuntura e suas armadilhas, como aconteceu com tantas lideranças respeitáveis ligadas ao movimento operário e popular.
Os números do IDH mostram para onde o país quer andar. Também apontam um caminho. Só não vê quem não quer.
por Paulo Moreira Leite, no seu blog

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