No banheiro da casa, um cachorro falante sai do chuveiro e um bebê com um ar malandro entra no cômodo segurando um copo de suco. Ele cobra um empréstimo que o animal diz não ter como pagar. É a deixa para o bebê espancar o bichano com o copo e depois com uma barra de ferro, antes de jogá-lo escada a baixo e colocá-lo em chamas. Tudo sem perder o ar de inocência.
A cena acima é uma das mais famosas do desenho Uma Família da Pesada. Os personagens são o emblemático Stewie, um bebê americano com sotaque britânico e personalidade sociopata. O cachorro é Brian, um humanoide escritor. Há 11 temporadas no ar nos Estados Unidos, o desenho não tem a mesma audiência de anos anteriores, mas é um sucesso da Fox.
As cenas de Stewie roubando carros, espancando crianças e atirando em sua mãe são virais na internet. E atraem há anos acusações de racismo, sexismo e intolerância, entre outras, de inúmeras entidades norte-americanas. Ainda assim, o programa de Seth MacFarlane, criador de American Dad e diretor do filme Ted, garantiu mais uma temporada. Há alguns anos, o comediante também conseguiu um contrato de 100 milhões de dólares com a Fox.
A fórmula provocativa, e para muitos ofensiva, de Uma Família da Pesada ainda parece funcionar. Assim como o formato precursor de Matt Groening com Os Simpsons, no ar desde 1989. Com piadas mais suaves e politizadas, embora não menos polêmicas, a paródia da família disfuncional norte-americana segue na grade da Fox há 24 anos.
Mas como estes programas resistem tanto tempo lidando de forma irônica com assuntos como o holocausto e religião?
“Os Simpsons e Uma Família da Pesada, e os outros desenhos, são vistos como ‘ofensores da oportunidade equivalente’. Uma semana ofendem gays, na próxima os judeus, etc. Se um programa fizesse sempre piadas com um mesmo grupo, seria outra coisa. Mas como ninguém escapa, ninguém pode se queixar”, acredita Richard Peña, diretor emérito do Festival de Cinema de Nova York e professor na Universidade de Columbia.
O estranhamento pela longevidade de ambos os programas também é causado pela emissora que os exibe nos EUA. A Fox pertencente ao mesmo grupo que abriga o canal de notícias Fox News, o predileto de republicanos e conservadores. Apesar de estarem no mesmo espólio, os canais atuam de forma independente, o que permite uma estranha harmonia entre a programação jornalística conservadora e programas politicamente incorretos. “A Fox News é bem diferente da Fox Broadcasting Corporation [canal de entretenimento]. Por isso, o ângulo conservador da Fox News não afeta as demais programações”, explica Gerard Bocaccio, ex-vice-presidente do FX, canal que pertence ao mesmo grupo.
Em Family Guy, são frequentes as piadas com deficientes, caracterizações hostis de judeus e personificações de um Jesus dançante e profano. Um comportamento que provocou reações da Liga Católica dos EUA. A entidade protestou contra um episódio em que um padre é retratado como pedófilo. Na cena, Stewie tenta salvar um personagem das mãos de agentes nazistas vestindo-o como um padre. Ao ser questionado se o homem era mesmo um clérigo, o bebê responde: “Claro, garanto que é. Ele me molestou muitas vezes.”
Os Simpsons também não economiza nas sátiras religiosas. Em um episódio, a família recebe o vizinho Flanders, um cristão fervoroso, para um jantar. Ao agradecer pela refeição, Bart diz: “Deus, nós mesmos pagamos por este jantar. Então, obrigado por nada.” “Um programa de televisão, assim como os filmes, pode ser uma zona de liberação, de fantasia. Espero nunca matar alguém, mas é bacana planejar um assassinato com as protagonistas de um film noir. E depois, voltar a casa. Esse é um dos prazeres da arte”, diz Peña.
Aparentemente, esse tipo de humor “incorreto” agrada o público. Ambos os programas estão entre os mais longevos da televisão norte-americana. Para Bocaccio, isso se deve principalmente às receitas geradas por esses desenhos. “Bom gosto é subjetivo, mas se as pessoas rejeitassem esses programas, não os assistiriam. Em Hollywood, ninguém colocaria no ar um programa que não tivesse anunciantes e que não gerasse renda.”
Quando o tema é lucro, Family Guy e Os Simpsons têm números expressivos. A série de McFarlane vale mais de 1 bilhão de dólares, entre DVDs e vendas de produtos. Apenas o filme dos Simpsons arrecadou mais de 520 milhões de dólares e a marca vale mais de 8 bilhões.
Os dois programas já não lideram em seus horários, mas registram índices elevados de audiência entre adultos de 18 a 49 anos, público alvo dos anúncios mais importantes. Eles também ficam no ar pelo lado econômico. Muitas vezes, renovar um programa com audiência baixa pode ser mais econômico que lançar algo novo. “Se um programa ainda mantém espectadores, a economia faz sentido. Além disso, quanto mais tempo no ar, mais bem sucedida marca fica para ser licenciada futuramente.” Ainda mais em um tempo em que a competição com a internet é acirrada.
por Gabriel Bonis
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