Todo o dinheiro que escorreu pelo propinoduto das pseudolicitações para a compra de equipamentos eletrônicos no Brasil não daria para vestir as desculpas esfarrapadas que retardam a apuração do caso. Ao se dispor a ajudar o governo a iluminar um dos mais impenetráveis porões da perver$ão nacional, a alemã Simens guindou o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) às manchetes. Vinculado à pasta da Justiça, o órgão vê-se agora diante de duas alternativas. Numa, elava sua estatura. Noutra, rebaixa o teto.
O Cade recusa-se a compartilhar com a Procuradoria da República as provas que manuseia. Escora sua decisão no argumento de que está obrigado a guardar sigilo. A alegação é ridícula e perigosa. É ridícula porque, no atacado, os dados sobre os quais o Cade senta em cima já ganharam o noticiário. É perigosa porque, no varejo, as informações são essenciais para fazer avançar investigações abertas pelo Ministério Público Federal e pela Promotoria de São Paulo. Num caso de corrupção, o que dizem nunca é tão importante quanto o que informam os documentos.
Em 4 de julho, agentes da Polícia Federal realizaram batidas em quatro cidades: São Paulo, Campinas, São Bernardo do Campo e Brasília. Munidos das pistas fornecidas pela Siemens e de mandados judiciais, recolheram papéis e computadores nos escritórios de gigantes como a francesa Alstom, a espanhola CAF e a canadense Bombardier. Tudo foi repassado ao Cade. O que fez o órgão? Por ora, pouco, muito pouco, pouquíssimo. Decorridos 39 dias, tudo o que a repartição tem a dizer é que “o material está em análise”. Heimmm?!?
“Ainda não foi possível separar o que é informação sensível –tais como aquelas relacionadas a sigilo bancário ou relacionadas à intimidade dos investigados– daquelas que podem comprovar eventuais condutas ilícitas cometidas.” Hummmm!!! O Cade ainda não instaurou um processo administrativo. Se instaurar, não sabe se “será possível delimitar quais são as empresas e pessoas físicas investigadas (que poderão então se defender das acusações), projetos e cidades afetados e o período em que o suposto cartel teria atuado.”
Tomando-se as explicações do Cade a sério, é inevitável concluir que, a despeito da delação da Siemens, o órgão da pasta da Justiça percorre os dados fornecidos e o papelório apreendido como um coelho cego que procura cenoura num deserto. É contra esse pano de fundo que o Cade dificulta a vida de procuradores e promotores. Embaça também o trabalho da Polícia Federal, que também teve negado um pedido de acesso aos dados que pingam no noticiário em ritmo de conta-gotas.
O Cade já havia batido a porta no bico de Geraldo Alckmin (PSDB), que guerreia na Justiça para obter os detalhes da apuração que ronda sua administração e a de seus antecessores tucanos. Até aí, a recusa do Cade podia ser entendida. O tucanato acha que os investigadores precisam tratá-lo como vítima. Mas quem investiga pode achar que os tucanos precisam mesmo é de interrogatório. Na hora própria, os encrencados serão chamados a se explicar. O que parece inconcebível é inibir o acesso dos órgãos de controle do Estado às provas e aos indícios.
Só com autorização judicial, bateu o pé o Cade. E a procuradora da República Karen Louise Jeanette Kahn, que representara o Ministério Público na assinatura do acordo de delação com a Siemens, viu-se compelida a bater às portas do Judiciário para tentar apalpar os documentos apreendidos. Protocolou quatro petições: uma petição na 4ª Vara Cível de São Paulo; outra na 6ª Vara Cível do Distrito Federal; uma terceira na 8ª Vara Cível de Campinas, e uma última na 3ª Vara Cível de São Bernardo.
Sempre foi assim, alega o Cade. “Desde 2010, mais de cinco casos [de investigação de carteis] seguiram esse trâmite.” Admita-se que seja verdade. Chegou a hora de mudar. Sob pena de flertar com o ridículo. No Brasil, a investigação sobe pela escada, preenche formulário em cinco vias, marca audiência e aguarda pacientemente na ante-sala. A corrupção sobe pelo elevador privativo de autoridades e entra sem bater. Mantido o ritmo, o pé-direito do Cade chegará ao rodapé.
by Josias de Souza