A tecla Dell não apaga o passado

Velhos tempos que não voltam nunca mais...


Tenho na ponta dos meus dedos o poder de eliminar o passado. Ao menos é isso que gosto de imaginar. Sei que não é verdade, sem problemas; em instantes de crise, ilusões e paliativos são ótimas rotas de fuga. E, apenas por hoje isso me basta.


A apenas um clique, um simples movimento do dedo indicador em direção à tecla DEL e lá se vai quase três anos de história. Registros e mais registros que não precisam ser queimados, rasgados ou quebrados. Sem afetação, sem estrondo, só um clique e adeus. Minimalista.

Não há caixas de papelão para arrastar, não há objetos a descartar, não há roupas para atirar pela janela do quarto andar. Os vizinhos não serão incomodados com o fim. Porque é só isso, o fim.
O porteiro do prédio ficará sem entender por que ela sumiu assim, tão de repente. “Ela veio aqui no outro fim de semana”, dirá intrigado pra dona Inês, a zeladora do prédio e das vidas alheias.
Tudo com muita discrição, sem portas arrombadas ou gritos no corredor. Sutil, delicado. Apenas uma overdose de exclamações no bate-papo online, um CAPS LOCK involuntário, dedos nervosos que erram palavras e esquecem acentos. Mas até isso eu posso apagar. “Não! por que você fez isso?”, ela gritará – muda – num torpedo ligeiro, fast food, inferior a 140 caracteres.
Deixo ela e quase 45 mil mensagens pra trás. A capacidade de armazenamento de símbolos, palavras e frases no universo de Mark Zuckerberg parece infinita, mas nem por isso permanente.
Assinamos um termo de compromisso e, está lá, eu tenho direito, basta um clique e tudo desaparece, é só apagar.
A foto do perfil dela não existe mais (fiz questão de bloquear) e agora só resta uma sombra incômoda, um tanto azulada, sem personalidade. Sem nome e sobrenome, sequer apelido, transformou-se após um clique em uma anônima “usuária do facebook”.
E assim, em alguns segundos, graças à tecnologia avançada do século XXI, um vasto arquivo de emoções, gestos, diálogos, expressões, abraços, beijos, risadas, lágrimas, conflitos, viagens e paisagens desaparecem. E não voltam mais. É só passear as mãos pelo teclado e acionar DELETE.
Mas antes há ainda aquela pergunta cretina, sim, aquela mesma que oferece a oportunidade de voltar atrás, postergar a decisão, titubear e tremer na base. Está certo disso? Olhe para o retrovisor, camarada, “tem certeza de que deseja mover este arquivo para a lixeira?” 
Sim, tenho.
Só que a lixeira ainda é um palco pra salvação, a chance de ressuscitar uma memória, de salvar do completo esquecimento um fragmento de amor, uma fatia de felicidade.
A primeira foto, o último poema, a música que ela cantou e gravou só pra você. Dê uma passeada pela lixeira e veja se ainda vale a pena restaurar alguns megabytes de intimidade, esperança. Tem certeza? Pense bem, rapaz, é sua última chance, ainda há atalhos para evitar o fim. Ctrl X mais Ctrl V e tudo está restaurado, posto devidamente de volta em seu lugar.
Com as mãos na lixeira, a pergunta definitiva: ”tem certeza de que deseja excluir este arquivo permanentemente?”
Não, claro que não.
E quem tem? Deveriam existir outras opções como “tem certeza de que necessita?” ou “tem certeza de que será mais fácil excluir?”.
Porque, claro, em relação ao desejo não há certeza nenhuma, mas não tenho dúvidas sobre o quanto é necessário e mais fácil excluir permanentemente este arquivo do que mantê-lo perdido por aí em alguma pasta ou subpasta subterrânea do computador – pronta para ser visitada sem querer.
Vamos lá, sem dramas. Nos últimos meses nem havia tantos arquivos assim, tantas fotos assim. No começo, imagens que não cabiam em um pendrive de 50 gigabytes. No fim, arquivos tão leves, rarefeitos, que poderiam ser anexados em um único envio de e-mail. Menos fotos, menos vídeos, menos textos. Em 2011, quatrocentas e setenta fotos. Em 2012, duzentas e vinte fotos. Em 2013, 86 fotos.
Sejamos honestos.
É bem verdade, fotos dão uma perigosa sensação de permanência. De repente, mesmo em meio ao caos, não entendemos por que aquela felicidade estampada em 2011, numa foto no Rio de Janeiro, se desmanchou e não pode ser reeditada agora, em 2013.
De repente, passamos a acreditar – na maior parte das vezes ingenuamente – que aquela partícula perdida no tempo não é exceção, mas regra; não é passado, mas presente. Distorcemos as lembranças, selecionando as melhores e apagando as ruins – atribuindo a elas significados, muitas vezes, superestimados e desproporcionais à realidade – muito mais dura e morna. Quem nunca se deparou com a contradição de resgatar uma foto que estampa alegria, registrada ironicamente em um dia de profunda tristeza? Daí, a grande crise de enfrentar o passado não só com memórias difusas, mas também com imagens.
Porém, nada disso consegue obscurecer o fato irremediável de que o passado – para além de nossa vontade – está presente, está ao nosso redor.
No restaurante oriental da esquina, está uma lembrança; num verso do Tom Jobim ressurge uma esperança; num ato político, onde bandeiras vermelhas tremulam, está o nosso sonho e projeto de vida.
Não é possível falsificar a história com a tecla DEL, nem mesmo reduzir a memória de um relacionamento a um punhado de experiências comprimidas em arquivos .doc.jpeg.mp3 e .mov.
É para além dos muros das redes sociais e das barricadas de um notebook que a vida acontece.
Leandro Olimpio

Leandro Olimpio tem 26 anos, mas já sofre a crise dos 30. É paulista por nascença, itanhaense por essência e carioca por opção. Jornalista por formação, largaria tudo por uma revolução.


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