Estava Bruno Passos trabalhando quando se deparou com o texto do Eduardo Amuri, ”Também morre quem atira“, uma argumentação sobre o vídeo do assaltante motoqueiro que foi baleado.
Ao olhar os comentários sobre o texto, fui ficando paralisado com o que lia. Notei que a opinião de alguns era, na verdade, a opinião de muitos:
“Tadinho do bandido mesmo! (sic)Vc provavelmente nunca foi roubado! Claro que o problema é da nossa sociedade e etc. Mas não podemos tratar um ladrão com compaixão.”“Quantos milhões no Brasil vivem na pobreza? (sic) agora, quantos milhões saem por aí assaltando e matando? (sic) uma extrema minoria…”
Explicar o roubo pela desigualdade é a mesma coisa de justificar o estupro pelo tesão.
“Robou porque queria ter uma moto da hora”… “Estuprou (sic) pq (sic) tava com vontade de transar com a moça. Por favor… vamos colocar os pés no chão e parar de blábláblá…”“Eu acho é pouco (sic), merecia muito mais. Esse papo de “direitos humanos” não cola mais. E não me venha falar que a justificativa do roubo é passar fome ou falta de oportunidade, porque pra isso tem bolsa família e tantas outras pessoas que nasceram no mesmo lugar que esse sujeito e estão correndo atrás do que é seu e nem por isso roubam… ”“Vão (sic) a merda todos os falsos moralistas utópicos marxistas que ficam fazendo revolução no Facebook e em comentários na internet. (sic) PQP.”
Eis mais uma opinião, no mar infinito de verdades da internet.
Brasil, São Paulo, Zona Leste. Um ladrão ameaça a vida de um cidadão para tomar-lhe um pertence. O ladrão consegue o que quer e, ao ir embora, é surpreendido por um policial que lhe dá voz de prisão.
O ladrão saca a arma e, antes que possa atirar, é alvejado na altura da cintura para que, assim, seja impossibilitado de ferir inocentes ou o próprio policial durante sua resistência a ordem de prisão.
Fim.
Você vê a cena e comemora.
- Porque quem se deu mal foi o bandido;
- Porque você também já foi roubado e ele teve o que mereceu;
- Porque você já passou dificuldades ou conhece quem passou e, nem por isso, nenhum de vocês foi para o mundo do crime;
- Porque agora temos um ladrão a menos no mundo! (embora ele não tenha morrido);
- Porque a justiça foi feita!
Se essas são as vitórias a serem comemoradas, digo, com toda a certeza, que estas foram as vitórias que mais me envergonharam.
É urgente entendermos que a vida não é uma partida de futebol, que não são todas as situações que devemos escolher um lado e torcer. Alguém ser baleado não é um gol. Assistir a um vídeo da situação não é um seriado e ver o bandido no chão não é passar de fase.
Há um erro absurdo de lógica na análise desta situação.
Ao vermos o vídeo ou ao expressarmos nossa opinião, é imperativo que escolhamos um dos lados para defender. Até aí, totalmente plausível.
O ingênuo é achar que existam apenas dois lados e que eles são representados pelo policial e pelo bandido. Ambos são meros agentes desta situação, que tem tantos lados quanto seria possível ter em uma bola de futebol.
Escolher lados em pensamentos maniqueístas é superficial e de uma covardia mental muito grande. Nunca saberemos se o bandido era um cara bom que nunca teve chance na vida e sofreu tanto que foi levado a isso (lembremos do ônibus 174) ou se era um cara ruim de coração que escolheu para ele a vida do crime de bom grado, ou ainda, quem sabe, o meio do caminho entre estas duas opções.
Se atendo aos fatos, como dizer que ser baleado é uma punição justa pelo roubo de uma moto?
Em uma situação em que as variantes são subjetivas e onde nunca saberemos a real circunstância dos fatos (os fatos não são a cena que vimos no vídeo, mas sim as ações que levaram todos os presentes para aquele acontecimento), devemos analisar apenas friamente, como faz o braço pesado, moroso e caolho da Lei?
Deveríamos. Mas é claro que, aqui, ninguém tem sangue de barata. Somos todos humanos e, além dos erros que nos são companheiros por direito, temos também algo maior que a Lei, intrínseco em todos nós: o senso de justiça.
Se é impossível não tomarmos partido, como saber se estamos escolhendo o lado correto diante de tanta subjetividade e, principalmente, como saber se estamos escolhendo um lado, ao invés de um mero agente da ação?
Basta apenas que se recorde do que corre em suas veias. Não é sangue de barata e tampouco óleos e circuitos mecânicos. Lembre-se que, embora o que corra seja sangue, ele ainda é humano. E escorre de você e de mim.
O sangue ali, na rua, é vermelho igual ao nosso e sempre deve ser lamentado, pois não é natural que ele se encontre na calçada. Não é de direita ou de esquerda, não é de policia ou ladrão, não é de pobre ou rico, preto ou branco. É só sangue.
Sangue de gente.
Não nos deixemos anestesiar pela superficialidade das relações atuais. Isto não é uma competição, não se comemora uma tragédia em detrimento a outra. Isso é tão absurdo quanto comemorar que morreu um velho ao invés de uma criança.
Se comemora que um assalto foi evitado, mas não se celebra que outro ser humano tenha sido baleado para isso. As maiores verdades são também as mais simples e infelizmente as mais difíceis de recordarmos em alguns casos.
Não zombe de nossa melhor qualidade. A humanidade não é e nunca deverá ser o privilégio dos ingênuos e inocentes. Ela é inerente a todos os homens e, se existem exceções — como existem em todas as coisas da vida–, lembremos que não somos nós estes seres infelizes.
Os conflitos sociais que existem não serão solucionados desta maneira, mas sim fortalecidos. Só os fuzis devem celebrar os tiros, pois são eles que dão significado a sua fria existência.
Obs: Convido todos os interessados a comparecerem ao Primeiro Grande Ato pela Auditoria da Dívida Pública Brasileira, hoje, às 17h, no vão do MASP (São Paulo). Este sim é um dos grandes responsáveis pelo vídeo polêmico que tanto comentamos.
Você sabia que metade do orçamento da União vai para o pagamento da dívida pública brasileira?
Pode apostar que o policial, o assaltante e a vítima do vídeo também não sabiam, e não tenha dúvida que o ambiente em que vivem foi diretamente afetado por esta circunstância.
Quer celebrar algo? Celebre este reflexão pública. Garanto que lhe trará frutos muitos mais consistentes e duradouros.
* * *
Nota do editor: todas as tirinhas que ilustram esse texto é do grande artista, André Dahmer, que faz o Malvados. Quem não conhece, faça o favor de entrar no site dele e ver todas as tirinhas, uma por uma.
BRUNO PASSOS
Estilista e dono da Conto Figueira. Ama livros, filmes, sol e bacon. Planeja virar um grande pintor assim que tiver um quintal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário