por Eduardo Ribeiro
Embora tenha cursado o ensino fundamental numa tradicional escola católica de Porto Alegre, nunca cheguei a me considerar cristão.
A catequese (formalmente, aula de religião, na prática exatamente isso) era uma experiência traumática, cheia daquele exato moralismo carola que se tornou estereotípico de certo catolicismo. Aos 9 anos me afirmei agnóstico e levei uma cusparada na cara de uma colega, que me chamou de Tomé, “ver para crer”.
Durante a esotérica década de 90, no entanto, lendo Nietzsche e convivendo com wiccans e thelemitas, comecei a entender melhor o cristianismo como fenômeno cultural, e até gerar certa simpatia. A engenharia reversa de olhar o cristianismo com olhos pagãos e seculares, quase antropológicos — na minha experiência — jogou boa luz sobre o cristianismo.
Mais tarde, cursando filosofia, tive que me familiarizar com Aquino e Agostinho, e cheguei a desenvolver admiração por místicos cristãos menos ortodoxos, como Mestre Eckhart e Escoto Erígena. Ainda assim, por se tratar de uma universidade pública, considero o foco sobre tais importantes filósofos cristãos arbitrário e, por si só, uma violação da separação entre igreja e estado.
Afinal, há suficientes universidades confessionais para realizarem estes estudos.
Nessa época do Natal, talvez fosse mais adequado ver filmes inspiradores, cristãos mas com ar secular, como versões de Um Conto de Natal (recomendo a de 1951, ou a com Bill Murray, de 1988, Scrooged), algo como A felicidade não se compra (It’s a Wonderful Life, 1946), ou até, quem sabe, o divertidíssimo Papai Noel às Avessas (Bad Santa, 2003), e talvez deixar os filmes abaixo para a Páscoa.
Mesmo assim, tendo em vista esse preâmbulo e minha devoção a estes filmes, talvez os comentários fiquem interessantes.
A Paixão de Cristo (The Passion of the Christ, 2004)
Uma de minhas maiores travessuras recorrentes é, ao ser pressionado a falar sobre Jesus ou cristianismo, sempre desviar o assunto para esse filme. Para frustrar todas as expectativas, começo a explicar porque gosto tanto dele.
Muitas e muitas vezes isso encerrou conversas que poderiam se tornar cansativas, porque — no mais das vezes — cristãos modernos descolados não gostam nem um pouco desta película.
A perspectiva midiática ao redor desse filme é que se trata de uma versão neopentecostal fanática, acusando os judeus pela morte de Jesus, e cheia de ultraviolência não condizente com uma religião tão, na mente de alguns, doce.
Para mim, a paixão é que interessa. E esse é um filme passional. A coisa toda é mostrada com o exagero que devidamente merece.
Basicamente assistimos uma longa sessão de tortura, num filme impecavelmente feito, e com uma perspectiva genuinamente medieval.
Ao ver este filme, como não reconhecer a grandeza de Jesus Cristo como trauma milenar, fratura exposta da civilização ocidental?
Não é filme fácil de assistir, mas por que deveria ser? A determinação do torturado, e sua capacidade de perdão pelos torturadores — os pontos mais altos, seus maiores milagres. Ora, pão e peixes, água e vinho: a exaltação religiosa só começa quando chagas, escaras e ossos quebrados são transcendidos.
E mais que isso, na predestinação onisciente da divindade, os agentes da paixão são os efetivos imortalizadores da mensagem. O teatro de horror da divindade se sacrificando pelo seu rebanho.
Excepcional.
Grande expressividade religiosa.
Chorei todas as seis vezes que assisti a esse filme.
A Última Tentação de Cristo (The Last Temptation of Christ, 1988)
O que A Paixão de Cristo exuda em “give me that old time religion“, A Última Tentação… chove em hipsterismo, sofisticação e pós-modernidade.
A qualidade técnica desses dois filmes é tão extraordinária que um milenialista tipo 3D não vai se desapontar com a qualidade de som e imagem. Isso é mais impressionante com a tentação do que com a paixão, visto que o primeiro é de 1988. A primeira coisa que chama a atenção é como esse filme é moderno, em todos os seus aspectos.
Não é possível comentar a trama sem entregar o grande spoiler, e esse é um filme em que a imprevisibilidade ajuda — além do que, tenho a ideia de que as pessoas mais jovens não o viram. É um filme tristemente esquecido: mesmo dentro do fantástico arcabouço criativo de Scorsese, esse filme merece um lugar exaltado.
Como o filme anterior, cheio de controvérsia. Mas por motivos opostos, este sendo supostamente tradicional de menos, enquanto o outro tradicional demais. Na minha posição de não cristão, ambos me parecem muito religiosos e apropriados. O sentimento dos dois filmes está no lugar certo.
Jesus Cristo Superstar (Jesus Christ Superstar, 1973)
Judas negro, ponto final. Que é talvez um dos maiores cantores que você jamais ouviu, Carl Anderson.
Se o objetivo for só criticar e se divertir, claro que A vida de brian (Life of Brian, 1979) será a melhor pedida. Porém, os anacronismos do Superstar, tanto o proposital no filme (capacetes e metralhadoras na guarda romana) quanto o de ser um musical com claro sabor hippie, são por si só um deleite.
O kitsch aqui é poder: até mesmo as reflexões e críticas são de um ativismo meio datado, mas isso estranhamente conta a favor do filme.
E que poder! Todo o elenco é extraordinário, a locação não podia ser melhor, e o figurino (novamente, duplamente anacrônico) é pura diversão. O ator que faz Jesus não tá tão mal, mas Judas rouba totalmente todas as cenas em que participa.
O mais curioso é que a Igreja Católica não desaprova esse filme: “um esforço sincero, ainda que ingênuo de contar a história de Jesus” The Catholic News Service.
Ahá! Superstar é “kosher”! Quem diria!
O Evangelho Segundo São Mateus (Il vangelo secondo Matteo, 1964)
Uma produção interessantíssima. Pasolini é mais conhecido por filmes de bem outro tipo, Salò, que muitos consideram a coisa mais nojenta já colocada na tela, e o desbunde amoralista (ou ultramoralista? Ou sei lá o quê!) de Teorema.
Além disso, ele é um marxista, e portanto ateu.
O que esse cara está fazendo então dirigindo uma adaptação absurdamente fiel do Evangelho de Mateus? 90% do texto está lá na Bíblia: não há filme sobre Jesus que seja tão diretamente bíblico.
E o filme é uma combinação inacreditavelmente bem sucedida de naturalismo e estilização: as locações e paisagens em preto e branco, absurdamente condizentes, ainda que não historicamente exatas; os atores — muitos deles amadores — quase sem exceção com um excelente trabalho, impressionante em alguns casos; a montagem, direção de arte e cinematografia devidamente transformando quase cada cena numa memória imóvel, como uma pintura ou fotografia.
Não se trata de realismo: é uma muito educada, respeitosa e — ora, por que não? — devota produção de, sob certo aspecto enganoso, nível escolar.
Há uma autoconsciência de teatro extracurricular em meio ao virtuosismo todo. Ainda assim, ou por isso mesmo, o distanciamento e a objetividade da montagem e da produção em geral faz desse o mais honesto de todos os filmes sobre Jesus. Um crente ficará comovido, um descrente ficará com suas dúvidas e apreciará um pouco mais de conhecimento sobre a religião cristã e a cinematografia. É imparcial assim.
“Posso não acreditar, mas sou um descrente que tem uma nostalgia pela crença.”
Pasolini afirmou isso numa entrevista em 1966.
A Igreja Católica e os críticos ateístas de cinema concordam: é o retrato mais favorável a Cristo já registrado em filme. Não que o ativismo “marxista” não transpareça em seu Jesus monocelha “a beira de um ataque de nervos”. O cara não é doce, não é mole, está sempre cortando todo mundo – e está lá no evangelho mesmo, fazer o quê?
É preciso comentar a trilha sonora. Enquanto A última tentação tem sons modernos, cativantes, e as outras produções sobre Jesus tenham trilhas hollywoodianas tradicionais ou não tenham música, este filme usa um coro de igreja de mulheres quenianas, um cantor improvisador e tambores africanos (Missa Luba, é o nome do conjunto), e um toque de blues do delta, ambos convivendo muito bem com um pouco da partitura erudita tradicional que se espera num filme como esse.
Embora a dublagem (comum em filmes italianos do período) atrapalhe um pouco, ao superarmos a fixação sobre isso, começamos a adentrar um filme que realmente mostra o que nos foi relatado da maneira mais direta possível, sem evitar as fortes emoções que o tema necessariamente engaja.
Jesus de Nazaré (Jesus of Nazareth, 1977)
Esta é a melhor das versões pasteurizadas e bem comportadas e tradicionais, num sentido catolicismo classe-média urbano do meio do século XX que você pode encontrar.
Aquela coisa de Jesus de olhos claros.
Trata-se de uma minissérie, então prepare-se para… até 382 minutos de cenários deslumbrantes e atores “padrão globo” em cores gloriosas (há versões de 180 e 237 minutos também disponíveis).
O Rei dos Reis (King of Kings, 1961) é a segunda opção de Jesus de olhos azuis, caso você prefira narração do Orson Welles (escrita por ninguém menos que Ray Bradbury), Technicolor e menos de 3 horas de filme (168 minutos).
Curiosamente, neste filme padrão católico, Jesus é bastante humano, os milagres são desinchados e misteriosos (como devem ser), mas há mais conversa filosófica do que no filme de Pasolini.
Em todo caso, essa é a escolha segura para assistir com aquela sua tia católica. As outras de forma alguma ofenderiam um não fanático, mas a versão mais baunilha é sem dúvida essa.
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