Bermudas no trabalho: a dupla realidade
Olá, amigo. Cá estou, depois de um pequeno período de férias forçadas. Operei nariz e garganta para respirar melhor e, um dia antes, quebrei o dedão do pé jogando bola. Tudo isso coincidiu com um dos períodos mais quentes que já tivemos em São Paulo, momento esse que vos escrevo agora.
Podendo me dar ao luxo de escolher em qual local do meu corpo sentir mais dor, eis que, para minha surpresa, o grande vilão do meu pós-operatório foi somente um: o calor.
Mais que a garganta, o nariz ou o pé, o que estava me deixando louco eram minhas costas alagadas no sofá.
Maldito sovina, custava ter comprado um ventilador quando eles ainda existiam no mercado por preços honestos? Pois bem, compelido pela fogueira inebriante da minha sala, pensei que era hora de trazer a vocês mais um pouco de reflexão sobre clima e vestuário.
Já falamos sobre o assunto no “como se vestir em um país quente“ e, indiretamente, no artigo sobre vestir camiseta regata, mas nada tinha sido escrito sobre este item que, ainda nos dias de hoje, parece causar polêmica no ambiente trabalho.
Contexto Histórico
Assim como no artigo sobre “homens de rosa”, o relato a seguir trata-se da visão ocidental da história.
Comecemos no fim do século 19. Nesta época, já existiam alguns tipos conhecidos de short pants(calças curtas), somente para homens e que também faziam parte de muitos uniformes escolares. Aliás, pode ser daí a origem de nossos primeiros preconceitos corporativos com ele.
Até completarem 10 anos, as crianças usavam somente short na escola e, após a graduação, elas passavam a usar calças. Esse momento poderia ser encarado como um ritual de passagem, dando ao short um viés infantil.
Já no início do século 20, se tornou comum o uso de short por atletas do ciclismo, devido, é claro, ao fator ergonômico positivo que eles produziam em detrimento a calça.
Durante a Segunda Guerra Mundial, tivemos o primeiro grande fator de influência na utilização do short como vestimenta masculina adulta. Soldados, em regiões tropicais, começaram a utilizar a peça não só pelas condições climáticas, mas também pela economia de matéria prima.
Após o fim da Guerra, seu uso se popularizou em diversos esportes, mas ele ainda não era considerado uma peça comum fora destas atividades. Se um tenista estivesse jogando de short, ao fim do jogo, ele se limpava e vestia calças para só depois ir conversar com as outras pessoas.
Com o passar dos anos, a peça também foi sendo adotada como traje de banho, podendo ser vista timidamente em praias. Já em meados dos anos 50, algumas celebridades de Hollywood passaram a usá-lo também.
Na década de 60, o estilo de vida californiano ajudou ainda mais a alavancar a peça como item de passeio e, no seguir dos anos, sua popularidade só aumentou.
Arrisco dizer que é a única peça do vestuário masculino que, desde sua criação, permanece em ascendência.
Agora que já estamos contextualizados, hora do salto para os dias de hoje
Passear pode, trabalhar não
Duas notícias recentes chamaram bastante atenção para este tema: a campanha Bermudas Sim e o rapaz que, proibido de ir de shorts, foi trabalhar de saia.
No primeiro caso, três publicitários se reuniram para reivindicar algumas alterações nas convenções do vestuário corporativo nacional. Segundo eles, “a roupa não influencia na postura ou no rendimento profissional de ninguém”.
Na outra situação, um funcionário público tinha que seguir as normas do prédio onde trabalhava e, por isso, não podia ir de bermuda trabalhar. Foi então que viu uma brecha no regulamento — que permitia o uso de saias — e usou essa saída para abrandar um pouco o calor do dia a dia corporativo.
Ambos os casos tiveram a simpatia de todas as pessoas que conversei a respeito:
– É um absurdo ter que passar calor à toa por causa de uma roupa;
– Temos que usar roupas condizentes com nosso clima;
– Pros europeus tudo bem, mas aqui é muito quente.
Imagino que você tenha concordado com estas frases e com todas as outras que ouviu ou proferiu. Eu concordei.
Muitas vezes, na ânsia que temos de sermos os primeiros a compartilhar um link ou escrever sobre um assunto, acabamos não fazendo a parte mais importante de toda a etapa: refletir.
Comecemos primeiro analisando a campanha “Bermudas Sim”, com mais de 17 mil simpatizantes, números crescentes e matérias nos principais meios de comunicação brasileiros. Será um ótimo exemplo para vermos que incorrer no erro da falta de reflexão é mais fácil do que parece.
Uma de suas premissas principais diz ser uma campanha para mostrar que a roupa não influencia na postura ou no rendimento profissional de ninguém.
Muito bacana. Penso que pouquíssimas pessoas discordariam desta afirmação. Eis então que, no guia de mandamentos do site, nos são oferecidas algumas sugestões, os “bermudamentos”:
Agora me diga você: o movimento diz aos quatro ventos que roupa não influencia na postura ou no rendimento profissional, é ovacionado por isso, mas em seguida “sugere” em qual temperatura, comprimento, estilo e ocasião você deve ou não deve usar bermudas?
Isso tem nome: incoerência.
Também tem causa: falta de reflexão.
Antes de continuar, é importante dizer que gostei sim da iniciativa que eles tomaram. Fizeram algo efetivo a respeito de uma situação que incomoda o brasileiro há tempos, inclusive fizeram muito mais do que eu jamais fiz e o motivo de eu estar escrevendo aqui não é apontar o dedo para julgar, mas sim tentar trazer um pouco mais de consciência quando se trata de pensar sobre o vestuário no Brasil.
E não pense que você está livre de cometer um equívoco aqui também.
Você mesmo, uma pessoa sensata, que concorda com o uso de bermuda no ambiente de trabalho e que acredita que uma pessoa não deva ser julgada simplesmente por suas roupas.
Me responda sinceramente: você contrataria um advogado que veio ao seu encontro de regata? Confiaria em um médico que te atende no consultório de bermuda?
Caso suas respostas sejam negativas, não tenha dúvida, você também é um dos responsáveis por passar calor quando não deveria.
Antes que comece a pensar em respostas para se defender, acalme-se. Novamente, este artigo não é um juiz e você não é um réu. Isto é apenas um texto que tem por objetivo te trazer alguma reflexão sobre a maneira com que você percebe as coisas a sua volta.
Conclusão
Embora esteja correto eu afirmar que a roupa que uso não afetará a minha postura nem minha maneira de trabalhar, muito provavelmente ela poderá afetar a maneira como sou percebido e, por consequência disso, poderei ter diferentes respostas das pessoas que interagirem comigo durante este período.
As roupas são uma expressão poderosíssima para passarmos uma mensagem, seja ela qual for.
Assim como tudo em nossa vida, esta conclusão não abrange um simples “pode ou não pode”, “sim ou não”. Não tomemos isso como um duelo de torcidas.
Escolher um lado e torcer contra o outro não é só ingenuidade, como também é nocivo a todos (lembre-se sempre que você faz parte do “todos”).
Por último, imagina se ao chegar em uma reunião importantíssima para uma fusão milionária arriscada da sua companhia, você fosse recebido pelo dono da empresa que irá se juntar a sua e ele fosse aquele cara da segunda matéria que citei, vestindo camiseta junto com uma confortável saia.
Nesse momento, você se sentiria mais ou menos seguro?
Quando a resposta for esta — “nenhum dos dois, eu me sentiria igual” — então muito provavelmente você estará entrando na reunião vestindo uma bermuda confortável e talvez até seus crocs preferido.
Até lá, espero que seu desodorante seja bom.
Estilista e dono da Conto Figueira. Ama livros, filmes, sol e bacon. Planeja virar um grande pintor assim que tiver um quintal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário