Viver e sonhar
Para começar esse texto e manifestar minhas ideias, pretendo ser terminativo quanto à leitura: uma das mais importantes e belas coisas que um ser humano pode fazer para si mesmo e para a sociedade em que vive é ler por prazer.
Sou um defensor incansável da leitura, seja ela qual for. Poesia, romance, auto-ajuda etc.
O importante é ler.
Mas como o assunto de hoje é sonhar acordado, vou me concentrar na tentativa de semear o amor pela leitura e pelos locais onde a leitura pode ser feita e livros podem ser encontrados em excesso, incluindo bibliotecas, livrarias, além dos profissionais que exercem suas funções dentro desses lugares.
Para começar, é necessário mostrar a importância da leitura. E faço isso citando uma palestra queNeil Gaiman, o criador dos quadrinhos Sandman e de muitas outras obras adultas e infantojuvenis,deu na Reading Agency, uma instituição filantrópica inglesa, cuja missão é “dar a todos oportunidades iguais na vida, ajudando-os a se tornarem leitores confiantes e entusiasmados. Porque tudo muda quando lemos”. (Tradução minha, feita a partir do site da instituição).
Gaiman nos diz que certa vez, em Nova York, escutou um palestrante falar sobre a construção de prisões privadas nos Estados Unidos, uma indústria em amplo crescimento. Sabemos que todo investimento, para ser bem executado, precisa de planejamento a curto, médio e longo prazo.
Nesse caso, planejamento a longo prazo das indústrias de prisões privadas precisa prever quantos prisioneiros existirão nos próximos anos para que nesse período não haja escassez de espaço. Estudos feitos por essas indústrias encontraram uma maneira bastante fácil para descobrir o número final. Eles simplesmente basearam suas teorias na porcentagem de crianças entre 10 e 11 anos que não conseguiam ler.
Claro que essa relação não é perfeita e nem deseja reduzir cálculos sociais tão complexos a uma porcentagem de pessoas que conseguem ler efetivamente ou por prazer. Se fosse assim tão simples, não haveria criminalidade em sociedades alfabetizadas. Porém, segundo Gaiman, o principal motivo para isso é que pessoas alfabetizadas leem por prazer, principalmente ficção.
As utilidades da leitura
Quem gosta de ler vai entender a analogia que vou fazer agora, apesar de ser um tanto quanto estranha: ler é uma droga viciante.
Vicia porque não permite ao leitor adicto ter controle sobre o fluxo de leitura. O viciado é obrigado a virar a próxima página, a continuar lendo a história para saber o que acontece em seguida e, enquanto não sacia esse desejo crônico, não consegue parar de ler.
E, como toda a droga, a prática literária requer um ingrediente indispensável: o prazer.
E é com esse tesão que a primeira utilidade da leitura aparece. A cada novo livro, uma nova porta se abre. E o adicto sempre quer experimentar uma droga – livro – mais forte, com o objetivo de reproduzir o prazer que teve durante a última leitura. Sendo assim, um livro leva a outro, e novos caminhos, novas ideias e novos mundos se abrem.
Por consequência disso não sou contra nenhum tipo de leitura. Pelo contrário, acho que a pessoa deve ler aquilo que deseja, pois só assim conseguirá alcançar leituras mais densas e complexas no decorrer de sua carreira como leitor. Lembram-se daquela expressão antiga que nossos pais diziam para nós, “ninguém nasce sabendo”?
Pois é, ela também se aplica na leitura.
É claro que existem gênios superdotados que já lia A Divina Comédia de Dante Alighieri com menos de dez anos, mas certamente esses indivíduos são exceções raríssimas. A maioria das pessoas não consegue fazer isso dada a dificuldade em entender uma história escrita em versos e repleta de simbolismos. E para aqueles que se encontram na maioria, ler livros complexos de maneira plena requer exercício e bagagem literária, que não se constrói da noite para o dia.
Quando falo que qualquer tipo de leitura é válida, quero dizer qualquer mesmo. Vou usar um exemplo.
Vampiro bobo e vampiro fodão?
Se no final da infância e início da adolescência um garoto, ou garota, começa a se interessar por livros de ficção cujos personagens são vampiros e, durante uma pesquisa no Google, encontra diversos títulos e comentários sobre eles a sua disposição. No final da busca, ele separa dois títulos que lhe interessam por motivos diferentes: o livro Crepúsculo surgiu para ela como o título mais popular, sobre o qual milhões de pessoas já leram no mundo inteiro e que possui uma adaptação recente para o cinema. O segundo título é um clássico da literatura vampiresca chamado Dráculade Bram Stoker.
Ela pode escolher qualquer um dos dois, mas, por conta da influência de amigos do colégio, a nossa adolescente chega a um veredito final e escolher ler Crepúsculo. Livro eleito, que se comece a leitura.
Ao terminar o primeiro livro, ela já sabe que uma saga composta de outros livros precisa ser lida para que ela possa entender toda a trama. E ela faz isso. Ao final, descobre-se apaixonada por literatura vampiresca e começa a se questionar sobre aquele clássico chamado Drácula.
Decide então ir a uma livraria para comprá-lo. Entretanto, o formato episcular do livro (sim, para quem não sabe, Drácula foi composto por meio de cartas escritas pelos próprios personagens envolvidos na história) é bastante complicado para uma pré-adolescente de doze anos, e a tentativa de leitura precisa ser abandonada.
De toda forma, o clássico já está em sua estante, esperando o melhor momento para ser novamente elegido.
O que quero dizer com isso é que a bagagem literária – especialmente aquela construída pela leitura prazerosa – de um indivíduo vai sendo formada aos poucos, leitura após leitura, começando por livros simples e fáceis até chegar nos mais complexos. Que desastre seria na formação intelectual da nossa adolescente se, ao verificar o êxtase da menina ao ler Crepúsculo, seu pai se revolta e decide empurrar goela abaixo um Drácula, só porque ele considera esse título uma leitura ideal.
Como ela ama o pai, muito provavelmente receberá a indicação e abandonará sua leitura prazerosa para se frustar com um livro que entenderá muito pouco. Duas consequências graves podem decorrer desse acontecimento: ou ela nunca mais vai conseguir ler Drácula novamente ou, o que é pior, nunca mais vai conseguir ler com prazer novamente.
E é assim que, muitas vezes, com uma boa intenção, um pai pode destruir o amor de uma criança pela leitura.
Resumindo: nenhuma leitura é ruim demais para um leitor apaixonado. O prazer de descobrir novos mundos não pode encontrar tolos preconceitos em seu caminho. A melhor maneira de influenciar uma criança ou adolescente é mostrar-lhes que a leitura é uma atividade prazerosa, e não tentar conduzir suas leituras a partir de uma perspectiva nossa. E de que maneira podemos fazer isso? Simples. Dando acesso às crianças a todos os livros possíveis e deixando-as lerem à vontade.
Liberdade de leitura e escolha
Minha experiência pessoal segue nesse tom. Quando era mais jovem, meu pai me levava para passear em diversos lugares, mas aquele que eu mais gostava era quando íamos a uma livraria. E uma coisa curiosa acontecia quando estávamos lá. Meu pai nunca me negava a compra de um livro, por maior que fosse a quantidade. O contrário acontecia quando íamos a uma loja de brinquedos.
Eu poderia escolher centenas deles, mas, no fim, magicamente, ele conseguia me convencer a levar apenas um.
Dessa forma, meu pai me estimulava pelo excesso e sempre respeitava minhas escolhas, sem julgar se eu tinha capacidade ou não para ler sobre determinado assunto.
Um caso bem claro marcou a minha adolescência.
Com treze anos, lembro de ter escutado alguém falar sobre uma personalidade latino-americana conhecida pela alcunha de Che Guevara e fiquei bastante interessado para saber mais sobre ele. Foi então que, em uma grande Feira de Livros na minha cidade, encontrei uma biografia dele escrita por Jon Lee Anderson. Imediatamente pedi ao meu pai que o comprasse para mim. Ele me olhou, olhou para o calhamaço de quase mil páginas e perguntou: “você vai conseguir ler um livro desse tamanho, meu filho?”.
Corajosamente, respondi que sim.
E ele comprou para mim, apesar do preço salgado que um livro desse tamanho costuma ter. Com isso, meu pai demonstrou não carregar consigo nenhum tipo de julgamento, preferindo dar acesso aos livros que seu filho gostaria de ler por escolha própria.
Resultado: li pela primeira vez o livro em apenas dois meses, depois de quatro anos li novamente e até hoje guardo essa magnífica experiência que vos conto no presente momento.
Mas com tanta história, quase me esqueço que ainda preciso apontar uma outra utilidade da leitura. Então vamos lá.
Carinho e empatia
Com o prazer pela leitura, algo surge automaticamente. O carinho e a empatia. E são esses elementos que nos fazem agir como pessoas cheias de personalidade, e não como robôs que apenas reproduzem o que lhes é programado. Com o carinho pela leitura, o indivíduo experimenta outras realidades, viaja para mundo que jamais conheceria e, principalmente, descobre que outras pessoas podem ter as mesmas experiências.
É nesse ponto que se destaca a empatia.
Para ilustrar esse fenômeno, cito novamente Neil Gaiman.
Em sua palestra, ele diz ter estado na China em 2007 por ocasião da primeira convenção de ficção científica e fantasia aprovada pelo partido comunista na história da China e descobriu algo surpreendente.
Curiosamente, antes desse evento, a ficção científica era terminantemente reprovada por lá, e, por conta disso, Gaiman questionou o fato a um oficial do governo.
Sua resposta foi direta e eu reproduzo as palavras de Gaiman (tradução tirada do site):
“Os chineses eram brilhantes em fazer coisas se outras pessoas trouxessem os planos para eles. Mas eles não inovavam e não inventavam. Eles não imaginavam.Então eles mandaram uma delegação para os Estados Unidos, para a Apple, para a Microsoft, para o Google, e eles perguntaram às pessoas de lá que estavam inventando seu próprio futuro. E eles descobriram que todos eles leram ficção científica quando eram meninos e meninas”.
A leitura prazerosa é responsável por esse escapismo. O exemplo dado por Gaiman mostra muito bem isso.
Os trabalhadores chineses eram excelentes reprodutores de tarefas; nisso eram craques. Mas apenas com inovação sua nação conseguiria vencer num mercado econômico tão disputado. E para conseguirem pensar em ideias novas, os chineses precisam consumir literatura ficcional, especialmente a científica, de modo a conquistar ferramentas.
Como ainda é uma atitude recente, poucos resultados podemos ser confirmados, mas é interessante que um povo tão pragmático como os chineses tenham chegado a uma conclusão como essas.
Muitos outros fatores também são importantes para a construção de um leitor apaixonado. Porém, tudo deve começar dentro de casa, com uma família que respeita os gostos e individualidades da criança. Os pais devem, sim, ler livros para seus filhos, mesmo depois que eles já tenham aprendido a ler por conta própria. Porém, a leitura não deve ser obrigatória.
Para isso não acontecer, é fácil.
Basta que a criança veja o quanto os pais gostam de gastar suas energias lendo para que comecem a querer experimentar essa droga viciante, mas extremamente importante e construtiva.
A palestra do Neil Gaiman
Link YouTube | Neil Gaiman Reading Agency lecture 2013
Abaixo a fala completa transcrita pelo site index-a-dora. É grande, mas se você tem algum apreço pela leitura, vale a pena.
* * *
É importante para as pessoas dizerem de que lado elas estão e porque, e se elas podem ou não ser tendenciosas. Um tipo de declaração de interesse dos membros. Então eu estarei conversando com vocês sobre leitura. Direi à vocês que as bibliotecas são importantes. Vou sugerir que ler ficção, que ler por prazer, é uma das coisas mais importantes que alguém pode fazer. Vou fazer um apelo apaixonado para que as pessoas entendam o que as bibliotecas e os bibliotecários são e para que preservem ambos.
E eu sou óbvia e enormemente tendencioso: eu sou um escritor, muitas vezes um autor de ficção. Escrevo para crianças e adultos. Por cerca de 30 anos eu tenho ganhado a minha vida através das minhas palavras, principalmente por inventar as coisas e escrevê-las. Obviamente está em meu interesse que as pessoas leiam, que elas leiam ficção, que bibliotecas e bibliotecários existam para nutrir amor pela leitura e lugares onde a leitura possa ocorrer.
Então sou tendencioso como escritor. Mas eu sou muito, muito mais tendencioso como leitor. E eu sou ainda mais tendencioso enquanto cidadão britânico.
E estou aqui dando essa palestra hoje a noite sob os auspícios da Reading Agency: uma instituição filantrópica cuja missão é dar a todos as mesmas oportunidades na vida, ajudando as pessoas a se tornarem leitores entusiasmados e confiantes. Que apoia programas de alfabetização, bibliotecas e indivíduos e arbitrária e abertamente incentiva o ato da leitura. Porque, eles nos dizem, tudo muda quando lemos.
E é sobre essa mudança e este ato de leitura que quero falar hoje a noite. Eu quero falar sobre o que a leitura faz. O porquê de ela ser boa.
Uma vez eu estava em Nova York e ouvi uma palestra sobre a construção de prisões particulares – uma ampla indústria em crescimento nos Estados Unidos. A indústria de prisões precisa planejar o seu futuro crescimento – quantas celas precisarão? Quantos prisioneiros teremos daqui 15 anos? E eles descobriram que poderiam prever isso muito facilmente, usando um algoritmo bastante simples, baseado em perguntar a porcentagem de crianças de 10 e 11 anos que não conseguiam ler. E certamente não conseguiam ler por prazer.
Não é um pra um: você não pode dizer que uma sociedade alfabetizada não tenha criminalidade. Mas existem correlações bastante reais.
E eu acho que algumas destas correlações, a mais simples, vem de algo muito simples. As pessoas alfabetizadas leem ficção.
A ficção tem duas utilidades. Primeiramente, é uma droga que é uma porta para leituras. O desejo de saber o que acontece em seguida, de querer virar a página, a necessidade de continuar, mesmo que seja difícil, porque alguém está em perigo e você precisa saber como tudo vai acabar… Este é um desejo muito real. E te força a aprender novos mundos, a pensar novos pensamentos, a continuar. Descobrir que a leitura por si é prazerosa. Uma vez que você aprende isso, você está no caminho para ler de tudo. E a leitura é a chave. Houve um burburinho brevemente há alguns anos atrás sobre a ideia de que estávamos vivendo em um mundo pós-alfabetizado, no qual a habilidade de fazer sentido através de palavras escritas estava de alguma forma redundante, mas esses dias acabaram: as palavras são mais importantes do que jamais foram: nós navegamos o mundo com palavras, e uma vez que o mundo desliza para a web, precisamos seguir, comunicar e compreender o que estamos lendo. As pessoas que não podem entender umas às outras não podem trocar ideias, não podem se comunicar e apenas programas de tradução vão tão longe.
A forma mais simples de ter certeza de que educamos crianças alfabetizadas é ensiná-los a ler, e mostrarmos a eles que a leitura é uma atividade prazerosa. E isso significa, na sua forma mais simples, encontrar livros que eles gostem, dar a eles acesso a estes livros e deixar que eles os leiam.
Eu não acho que exista algo como um livro ruim para crianças. Vez e outra se torna moda entre alguns adultos escolher um subconjunto de livros para crianças, um gênero, talvez, ou um autor e declará-los livros ruins, livros que as crianças devem parar de ler. Eu já vi isso acontecer repetidamente; Enid Blyton foi declarado um autor ruim, RL Stine também, assim como dúzias de outros. Quadrinhos tem sido acusados de promover o analfabetismo.
É tosco. É arrogante e é burro. Não existem autores ruins para crianças, que as crianças gostem e querem ler e buscar, por que cada criança é diferente. Eles podem encontrar as histórias que eles precisam, e eles levam a si mesmos nas histórias. Uma ideia banal e desgastada não é banal nem desgastada para eles. Esta é a primeira vez que a criança a encontrou. Não desencoraje uma criança de ler porque você acha que o que eles estão lendo é errado. A ficção que você não gosta é uma rota para outros livros que você pode preferir. E nem todo mundo tem o mesmo gosto que você.
Adultos bem intencionados podem facilmente destruir o amor de uma criança pela leitura: parar de ler pra eles o que eles gostam, ou dar a eles livros ‘chatos mas que valem a pena’ que você gosta, os equivalentes “melhorados” da literatura Vitoriana do século XXI. Você acabará com uma geração convencida de que ler não é legal e pior ainda, desagradável.
Precisamos que nossas crianças entrem na escada da leitura: qualquer coisa que eles gostarem de ler irá movê-las, degrau por degrau, à alfabetização. (Além disso, não faça o que eu fiz quando a minha filha de 11 anos estava gostando de ler RL Stine, que foi pegar uma cópia de Carrie do Stephen King e dizer que se você gosta deste, adorará isto! Holly não leu nada além de histórias seguras de colonos em pradarias pelo resto de sua adolescência e até hoje me dá olhares tortos quando o nome de Stephen King é mencionado).
E a segunda coisa que a ficção faz é construir empatia. Quando você assiste TV ou vê um filme, você está olhando para coisas acontecendo a outras pessoas. Ficção de prosa é algo que você constrói a partir de 26 letras e um punhado de sinais de pontuação, e você, você sozinho, usando a sua imaginação, cria um mundo e o povoa e olha através dos olhos de outros. Você sente coisas, visita lugares e mundos que você jamais conheceria de outro modo. Você aprende que qualquer outra pessoa lá fora é um eu, também. Você está sendo outra pessoa e quando você volta ao seu próprio mundo, você estará levemente transformado.
Empatia é uma ferramenta para tornar pessoas em grupos, que nos permite que funcionemos como mais do que indivíduos auto-obcecados.
Você também está descobrindo algo enquanto lê que é de vital importância para fazer o seu caminho no mundo. E é isto:
O mundo não precisa ser assim. As coisas podem ser diferentes.
Eu estive na China em 2007 na primeira convenção de ficção científica e fantasia aprovada pelo partido na história da China. E em algum momento eu tomei um alto oficial de lado e perguntei a ele “Por que? A ficção científica foi reprovada por tanto tempo. Por que isso mudou?”. É simples, ele me disse. Os chineses eram brilhantes em fazer coisas se outras pessoas trouxessem os planos para eles. Mas eles não inovavam e não inventavam. Eles não imaginavam. Então eles mandaram uma delegação para os Estados Unidos, para a Apple, para a Microsoft, para o Google, e eles perguntaram às pessoas de lá que estavam inventando seu próprio futuro. E eles descobriram que todos eles leram ficção científica quando eram meninos e meninas. A ficção pode te mostrar um outro mundo. Pode te levar para um lugar que você nunca esteve. E uma vez que você tenha visitado outros mundos, como aqueles que comeram a fruta da fada, você pode nunca mais ficar completamente satisfeito com o mundo no qual você cresceu. Descontentamento é uma coisa boa: pessoas descontentes podem modificar e melhorar o mundo, deixá-lo melhor, deixá-lo diferente.E enquanto ainda estamos nesse assunto, eu gostaria de dizer algumas palavras sobre escapismo. Eu ouço o termo utilizado por aí como se fosse uma coisa ruim. Como se ficção “escapista” fosse um ópio barato utilizado pelos confusos e pelos tolos e pelos desiludidos e a única ficção que seja válida, para adultos ou crianças é a ficção mimética, espelhando o pior do mundo em que o leitor ou a leitora se encontra.
Se você estivesse preso em uma situação impossível, em um lugar desagradável, com pessoas que te quisessem mal, e alguém te oferecesse um escape temporário, por que você não ia aceitar isso? E ficção escapista é apenas isso: ficção que abre uma porta, mostra o sol lá fora, te dá um lugar para ir onde você esteja no controle, esteja com pessoas com quem você queira estar (e livros são lugares reais, não se enganem sobre isso); e mais importante, durante o seu escape, livros também podem te dar conhecimento sobre o mundo e o seu predicamento, te dar armas, te dar armaduras: coisas reais que você pode levar de volta para a sua prisão. Habilidades e conhecimento e ferramentas que você pode utilizar para escapar de verdade.
Como JRR Tolkien nos lembrou, as únicas pessoas que fazem injúrias contra o escape são prisioneiros.
Outra forma de destruir o amor de uma criança pela leitura, claro, é se assegurar de que não existam livros de nenhum tipo por perto. E não dar a elas nenhum lugar para que leiam estes livros. Eu tive sorte. Eu tive uma biblioteca local excelente enquanto eu cresci. Eu tive o tipo de pais que podiam ser persuadidos a me deixar na biblioteca no caminho do trabalho deles nas férias de verão, e o tipo de bibliotecários que não se importavam que um menino pequeno e desacompanhado ficasse na biblioteca das crianças todas as manhãs e ficasse mexendo no catálogo de cartões, procurando por livros com fantasmas ou mágica ou foguetes neles, procurando por vampiros ou detetives ou bruxas ou fantasias. E quando eu terminei de ler a biblioteca de crianças eu comecei a de adultos.
Eles eram ótimos bibliotecários. Eles gostavam de livros e eles gostavam dos livros que estavam sendo lidos. Eles me ensinaram como pedir livros das outras bibliotecas em empréstimo inter-bibliotecas. Eles não eram arrogantes em relação a nada que eu lesse. Eles pareciam apenas gostar do fato de existir esse menininho de olhos arregalados que amava ler, e conversariam comigo sobre os livros que eu estava lendo, achariam pra mim outros livros em uma série, eles ajudariam. Eles me tratavam como outro leitor – nem mais, nem menos – o que significa que eles me tratavam com respeito. Eu não estava acostumado a ser tratado com respeito aos oito anos de idade.
Mas as bibliotecas tem a ver com liberdade. A liberdade de ler, a liberdade de ideias, a liberdade de comunicação. Elas tem a ver com educação (que não é um processo que termina no dia que deixamos a escola ou a universidade), com entretenimento, tem a ver com criar espaços seguros e com o acesso à informação.
Eu me preocupo que no século XXI as pessoas entendam errado o que são bibliotecas e qual é o propósito delas. Se você perceber uma biblioteca como estantes com livros, pode parecer antiquado e datado em um mundo no qual a maioria, mas não todos, os livros impressos existem digitalmente. Mas pensar assim é errar o ponto fundamentalmente.
Eu acho que tem a ver com a natureza da informação. A informação tem valor, e a informação certa tem um enorme valor. Por toda a história humana, nós vivemos em escassez de informação e ter a informação desejada era sempre importante, e sempre valia alguma coisa: quando plantar sementes, onde achar as coisas, mapas e histórias e estórias – eles eram sempre bons para uma refeição e companhia. Informação era uma coisa valorosa, e aqueles que a tinham ou podiam obtê-la podiam cobrar por este serviço.
Nos últimos anos, nos mudamos de uma economia de escassez da informação para uma dirigida por um excesso de informação. De acordo com o Eric Schmidt do Google, a cada dois dias agora a raça humana cria tanta informação quanto criávamos desde o início da civilização até 2003. Isto é cerca de cinco exobytes de dados por dia, para vocês que mantém a contagem. O desafio se torna não encontrar aquela planta escassa crescendo no deserto, mas encontrar uma planta específica crescendo em uma floresta. Precisaremos de ajuda para navegar nesta informação e achar a coisa que precisamos de verdade.
Bibliotecas são lugares que pessoas vão para obter informação. Livros são apenas a ponta do iceberg da informação: eles estão lá, e bibliotecas podem fornecer livros gratuitamente e legalmente. Crianças estão emprestando livros de bibliotecas hoje mais do que nunca – livros de todos os tipos: de papel e digital e em áudio. Mas as bibliotecas também são, por exemplo, lugares onde pessoas que não tem computadores, que podem não ter conexão à internet, podem ficar online sem pagar nada: o que é imensamente importante quando a forma que você procura empregos, se candidata para entrevistas ou aplica para benefícios está cada vez mais migrando para o ambiente exclusivamente online. Bibliotecários podem ajudar estas pessoas a navegar neste mundo.
Eu não acredito que todos os livros irão ou devam migrar para as telas: como Douglas Adams uma vez me falou, mais de 20 anos antes do Kindle aparecer, um livro físico é como um tubarão. Tubarões são velhos: existiam tubarões nos oceanos antes dos dinossauros. E a razão de ainda existirem tubarões é que tubarões são melhores em serem tubarões do que qualquer outra coisa que exista. Livros físicos são durões, difíceis de destruir, resistentes à banhos, operam a luz do sol, ficam bem na sua mão: eles são bons em serem livros, e sempre existirá um lugar para eles. Eles pertencem às bibliotecas, bem como as bibliotecas já se tornaram lugares que você pode ir para ter acesso à ebooks, e audio-livros e DVDs e conteúdo na web.
Uma biblioteca é um lugar que é um repositório de informação e dá a cada cidadão acesso igualitário a ele. Isso inclui informação sobre saúde. E informação sobre saúde mental. É um espaço comunitário. É um lugar de segurança, um refúgio do mundo. É um lugar com bibliotecários. Como as bibliotecas do futuro serão é algo que deveríamos estar imaginando agora.
Alfabetização é mais importante do que nunca, nesse mundo de mensagens e e-mail, um mundo de informação escrita. Precisamos ler e escrever, precisamos de cidadãos globais que possam ler confortavelmente, compreender o que estão lendo, entender as nuances e se fazer entender.
As bibliotecas realmente são os portais para o futuro. É tão lamentável que, ao redor do mundo, nós observemos autoridades locais apropriarem-se da oportunidade de fechar bibliotecas como uma maneira fácil de poupar dinheiro, sem perceber que eles estão roubando do futuro para serem pagos hoje. Eles estão fechando os portões que deveriam ser abertos.
De acordo com um estudo recente feito pela Organisation for Economic Cooperation and Development, a Ingaterra é o “único país onde o grupo de mais idade tem mais proficiência tanto em alfabetização quanto em capacidade de usar ou entender as técnicas numéricas da matemática do que o grupo mais jovem, depois de outros fatores, tais como gênero, perfis sócio-econômicos e tipo de ocupações levados em consideração”.
Colocando de outro modo, nossas crianças e netos são menos alfabetizados e menos capazes de utilizar técnicas de matemática do que nós. Eles são menos capazes de navegar o mundo, de entendê-lo e de resolver problemas. Eles podem ser mais facilmente enganados e iludidos, serão menos capazes de mudar o mundo em que se encontram, ser menos empregáveis. Todas essas coisas. E como um país, a Inglaterra ficará para trás em relação a outras nações desenvolvidas porque faltará mão de obra especializada.
Livros são a forma com a qual nós nos comunicamos com os mortos. A forma que aprendemos lições com aqueles que não estão mais entre nós, que a humanidade se construiu, progrediu, fez com que o conhecimento fosse incremental ao invés de algo que precise ser reaprendido, de novo e de novo. Existem contos que são mais velhos que alguns países, contos que sobreviveram às culturas e aos prédios nos quais eles foram contados pela primeira vez.
Eu acho que nós temos responsabilidades com o futuro. Responsabilidades e obrigações com as crianças, com os adultos que essas crianças se tornarão, com o mundo que eles habitarão. Todos nós – enquanto leitores, escritores, cidadãos – temos obrigações. Pensei em tentar explicitar algumas dessas obrigações aqui.
Eu acredito que temos uma obrigação de ler por prazer, em lugares públicos e privados. Se lermos por prazer, se outros nos verem lendo, então nós aprendemos, exercitamos nossas imaginações. Mostramos aos outros que ler é uma coisa boa.
Temos a obrigação de apoiar bibliotecas. De usar bibliotecas, de encorajar outras pessoas a utilizarem bibliotecas, de protestar contra o fechamento de bibliotecas. Se você não valoriza bibliotecas então você não valoriza informação ou cultura ou sabedoria. Você está silenciando as vozes do passado e você está prejudicando o futuro.
Temos a obrigação de ler em voz alta para nossas crianças. De ler pra elas coisas que elas gostem. De ler pra elas histórias das quais já estamos cansados. Fazer as vozes, fazer com que seja interessante e não parar de ler pra elas apenas porque elas já aprenderam a ler sozinhas. Use o tempo de leitura em voz alta para um momento de aproximação, como um tempo onde não se fique checando o telefone, quando as distrações do mundo são postas de lado.
Temos a obrigação de usar a linguagem. De nos esforçarmos: descobrir o que as palavras significam e como empregá-las, nos comunicarmos claramente, de dizer o que estamos querendo dizer. Não devemos tentar congelar a linguagem, ou fingir que é uma coisa morta que deve ser reverenciada, mas devemos usá-la como algo vivo, que flui, que empresta palavras, que permite que significados e pronúncias mudem com o tempo.
Nós escritores – e especialmente escritores para crianças, mas todos os escritores – temos uma obrigação com nossos leitores: é a obrigação de escrever coisas verdadeiras, especialmente importantes quando estamos criando contos de pessoas que não existem em lugares que nunca existiram – entender que a verdade não está no que acontece mas no que ela nos diz sobre quem somos. A ficção é a mentira que diz a verdade, afinal. Temos a obrigação de não entediar nossos leitores, mas fazê-los sentir a necessidade de virar as páginas. Uma das melhores curas para um leitor relutante, afinal, é uma estória que eles não são capazes de parar de ler. E enquanto nós precisamos contar a nossos leitores coisas verdadeiras e dar a ele armas e dar a eles armaduras e passar a eles qualquer sabedoria que recolhemos em nossa curta estadia nesse mundo verde, nós temos a obrigação de não pregar, não ensinar, não forçar mensagens e morais pré-digeridas goela abaixo em nossos leitores como pássaros adultos alimentando seus bebês com vermes pré-mastigados; e nós temos a obrigação de nunca, em nenhuma circunstância, escrever nada para crianças que nós mesmos não gostaríamos de ler.
Temos a obrigação de entender e reconhecer que enquanto escritores para crianças nós estamos fazendo um trabalho importante, porque se nós estragarmos isso e escrevermos livros chatos que distanciam as crianças da leitura e de livros, nós estaremos menosprezando o nosso próprio futuro e diminuindo o deles.
Todos nós – adultos e crianças, escritores e leitores – temos a obrigação de sonhar acordados. Temos a obrigação de imaginar. É fácil fingir que ninguém pode mudar coisa alguma, que estamos num mundo no qual a sociedade é enorme e que o indivíduo é menos que nada: um átomo numa parede, um grão de arroz num arrozal. Mas a verdade é que indivíduos mudam o seu próprio mundo de novo e de novo, indivíduos fazem o futuro e eles fazem isso porque imaginam que as coisas podem ser diferentes.
Olhe à sua volta: eu falo sério. Pare por um momento e olhe em volta da sala em que você está. Eu vou dizer algo tão óbvio que a tendência é que seja esquecido. É isto: que tudo o que você vê, incluindo as paredes, foi, em algum momento, imaginado. Alguém decidiu que era mais fácil sentar numa cadeira do que no chão e imaginou a cadeira. Alguém tinha que imaginar uma forma que eu pudesse falar com vocês em Londres agora mesmo sem que todos ficássemos tomando uma chuva. Este quarto e as coisas nele, e todas as outras coisas nesse prédio, esta cidade, existem porque, de novo e de novo e de novo as pessoas imaginaram coisas.
Temos a obrigação de fazer com que as coisas sejam belas. Não de deixar o mundo mais feio do que já encontramos, não de esvaziar os oceanos, não de deixar nossos problemas para a próxima geração. Temos a obrigação de limpar tudo o que sujamos, e não deixar nossas crianças com um mundo que nós desarrumamos, vilipendiamos e aleijamos de forma míope.
Temos a obrigação de dizer aos nossos políticos o que queremos, votar contra políticos ou quaisquer partidos que não compreendem o valor da leitura na criação de cidadãos decentes, que não querem agir para preservar e proteger o conhecimento e encorajar a alfabetização. Esta não é uma questão de partidos políticos. Esta é uma questão de humanidade em comum.
Uma vez perguntaram a Albert Einstein como ele poderia tornar nossas crianças inteligentes. A resposta dele foi simples e sábia. “Se você quer que crianças sejam inteligentes”, ele disse, “leiam contos de fadas para elas. Se você quer que elas sejam mais inteligentes, leia mais contos de fadas para elas”. Ele entendeu o valor da leitura e da imaginação. Eu espero que possamos dar às nossas crianças um mundo no qual elas possam ler, e que leiam para elas, e imaginar e compreender.
Filipe Larêdo é um amante dos livros e aprendeu a editá-los. Atualmente trabalha na Editora Empíreo, um caminho que decidiu seguir na busca de publicar livros apaixonantes. É formado em Direito e em Produção Editorial.